Um café democrático
A mesa sempre mediou as interações humanas em tempos de paz ou de guerra. A cafeteria é um símbolo do primeiro
Esta coluna foi escrita acompanhada de um v60 Divina Mogiana, um bourbon amarelo produzido em método natural por Paulo Mengali, no Sítio Santo Ambrósio em Divinolândia, interior de São Paulo, na região de Mogiana.
Este modelo de comércio chamado cafeteria está na gênese do processo de constituição do restaurante para o mundo ocidental, situando essa “criação” entre os séculos 16 e 18. Até porque a ideia de que a França foi a primeira cozinha, o blablablá de que inventaram o restaurante não se sustenta numa pesquisa aberta ao mínimo esforço arqueológico. Afinal, a história dá conta de operações similares já inaugurando esse movimento na China ainda da Baixa Idade Média.
Preâmbulo enorme para chegar com tranquilidade à discussão sobre a cafeteria. Desta fez podemos atribuir à Europa Meridional a formação deste modelo tal qual nos é hoje legível. Cafés não eram lugares para refeições “restauradoras” (daí o restaurante no raiar da Modernidade). Mas sim um ponto de encontro típico das castas mais nobres da sociedade europeia. Chás, cafés, chocolates não eram para qualquer bico.
Reportagem do History mostra que desde o Império Otomano - e atravessando a Revolução Francesa - cafeterias mediavam ideias revolucionárias. Na Turquia, cafeterias recebiam punições e banimentos por serem locais de reunião de dissidentes. O poder popular da cafeteria chegou a estremecer impérios e ser temido por monarcas do Reino Unido, segundo Markan Ellis, que escreveu The coffee house: a cultural history.
Um interessantíssimo artigo do The New York Times resgata a importância de um movimento de cafeterias instaladas a partir de San Francisco, próximo a QGs das forças armadas americanas por volta de 1968. Nesses lugares se reuniam G.I.s (soldados) que faziam aberta oposição à infame Guerra do Vietnã. Foram essas redes de cafés que impulsionaram um dos movimentos de pacificação nos EUA, acelerado após o Massacre de MỹLai.
Aliás, 68 foi um ano central dos movimentos jovens estudantis contra sistemas repressivos também no Brasil (a ditadura militar, que culminava na histórica invasão da UnB e perseguição dos estudantes e professores) e na França, cujo mês de maio se tornaria emblema da reivindicação da democratização e denúncia de guerras, a partir das lutas universitárias.
(Ainda me dedico a recuperar parte da história perdida dos comércios gastronômicos deste período em Brasília, ainda muito incipientes e frequentados pelo funcionalismo público e a elite da época)
Na nossa vizinha Argentina, em Buenos Aires especificamente, foi num antiquíssimo café, o Las Violetas, onde se reuniam as fundadoras do projeto de resistência Abuelas de Plaza de Mayo (tornada associação civil pelos direitos humanos). Este era um ponto de encontro para planejar as estratégias de saída da sanguinária ditadura fascista de 1976, e buscar as crianças perdidas e raptadas pelos militares, sob o comando do general extremista Videla.
Cafeterias voltariam a protagonizar um movimento politizado décadas mais tarde. Não seria um movimento organizado ou com um objetivo partidário claro. Quando falo em política e café refiro-me aos arranjos comerciais, que deixam de estar totalmente a serviço do sistema de commodities e abrem o flanco para se pensar cadeias curtas de alimentação, produção de orgânicos e valorização do campo, do agricultor.
Obviamente, não chegamos a uma revolução camponesa - apesar dos avanços dos movimentos de reforma agrária. Mas, ao se colocar no meio da concorrência com o grande capital e de sua poderosa indústria, as pequenas cafeterias especiais organizaram - inicialmente de modo desordenado - uma rebeldia até mesmo profissional em nome de uma relação mais sadia entre o campo e a cidade.
Muitas vezes chamadas de hipsters, noutras de esquerda-caviar (quando a pauta toma contornos mais partidários), mas ao final, para um momento de disputas narrativas e ideológicas, foram as cafeterias que tomaram para si a celebração da diversidade e do debate democrático. Na Brasília da virada do milênio, elas se tornaram espaços culturais, para debater o Brasil e o mundo. Eram assim as finadas Café Com Letras, Martinica Café e Café da Rua 8.
Em 2015, na cidade gaúcha de Novo Hamburgo, uma cafeteria chamada InCafé sediou a abertura da Semana da Anistia, da Comissão da Verdade, para refletir sobre os cruéis anos de chumbo da ditadura militar em uma sessão de cinema. A proposta da iniciativa era de levar as exibições justamente a lugares de circulação pública, como forma de democratizar a discussão.
Nesta última década, os cafés se mostraram empreendimentos menos complexos e mais baratos do que restaurantes ou bares (com longas jornadas noturnas) e fortaleceram a produção do agricultor, educou o público à medida em que expandiu a qualificação profissional do barismo e, de lambuja, assumiram a vocação de sua função pública.
As cafeterias se politizaram nos últimos anos, abrindo-se a posicionamentos e discussões sobre pertencimento, ideologias, gênero e raça, abraçando, muitas vezes na prática, movimentos de promoção de justiça social, inclusão social e, claro, defesa da democracia. Vimos isso abertamente no Manifesto Café, em Curitiba, com seu Samba do Proletariado; no Elã Cafés Especias, em Recife, pelas manifestações abertas pelo estado democrático de direito; e na Objeto Encontrado, em Brasília; com milhares de iniciativas (como discorri aqui), para citar algumas.
A mesa sempre foi mediadora dos momentos mais críticos da humanidade. É onde sela-se futuros de gentes e de nações; marca-se começos, fins e recomeços. À mesa planeja-se golpe de Estado ou estratégias de guerra, mas também constroem-se as resistências civis ou emenda-se o coração partido. E que sejam, ainda, para este futuro que se desenha, espaços onde as democracias não mais morrem, mas permaneçam e se fortaleçam.
Coffice do dia: Cata (GO)
Uma diferença elementar do chamado café especial para o ordinário está justamente no processo de colheita. Já não dependemos da indústria cafeeira de commodities, cujos grãos são retirados das galhas de qualquer modo, misturando variedades diferentes, fora o pouco crivo na seleção de cada fruto. Café bom é café catado. Também não é regra nem atestado definitivo de qualidade, saiba-se.
Essa característica inspira a indicação de hoje para um bom coffice, o Cata Café, situado na Rua Portugal na emergente (e muito populosa) cidade de Valparaíso (GO), considerada Entorno do DF, tamanha a proximidade fronteiriça e a complexidade de seus arranjos urbanísticos e de serviços públicos ofertados.
Cata vem da… cata. Este é um processo fundamental até mesmo para controle de pragas, como a broca, nos cafezais. É pegar frutinha do pé, tirar tbm do chão para o bem da plantação. No Cata, um empresário e um barista dividem-se na administração e serviço de cafés de boa procedência, de ótimos trabalhos de torrefação e, ao final, demonstra proeza na extração do néctar amargoso para a xícara de cerâmica. Nao fazem a cata, mas escolhem bem seus produtos. Eles têm trabalhado com o Ahá (resenhado semana passada).
O empreendimento é novo, aberto há apenas um par de meses. Funciona, portanto, em formato de testes. Por enquanto, abre somente aos sábados e domingos, das 9h às 20h.
Quase passei batido da entrada discretíssima. Há apenas uma placa esférica de uns 30 cm de diâmetro e uma escadaria. Sobe-se dois lances para então adentrar num acolhedor palacete. Décor moderninha, salões amplos, sofás, mesinhas, um balcão bem posicionado e amplo para atendimento e preparos. Ao fundo da enorme sobreloja ainda há espaço para sebo, com livros à venda - e que podem ser lidos ali mesmo. Um belo achado nessas minhas buscas intensas por um pouso confortável e adequado, com wi-fi, água da casa e, claro, um bom café.
"A mesa sempre foi mediadora dos momentos mais críticos da humanidade. É onde sela-se futuros de gentes e de nações; marca-se começos, fins e recomeços." - amei! Servimos história nas ruas e nas news essa semana, gostoso demais!