Esta edição foi escrita acompanhada de um V60, com café da variedade geisha, batizado de Geisha do Pedrinho, produzido a partir de processo natural pelo Sítio Amadillo, na Serra da Canastra (MG).
Penso como seria chegar à cafeteria e, ao invés de falar “me vê um espresso duplo” ou “desce um carioquinha” senão um decorado “latte”, soltasse: “Quero um café de licitação”. Este não é pra qualquer barista. Tem que saber fazer desde a compra até o serviço em xícaras encardidas ou nos infames copinhos descartáveis de 50ml, dispostos ao lado da térmica.
Para fazê-lo, é necessário escolher um fornecedor que seja ótimo em cafés tipo commodity e especialista em preço baixo - a qualidade do termo de referência do pregão da licitação a gente dá um jeito depois. Em seguida, é fazer de uma vezada só aquele quilo de arábica (aceitável 70%).
Método: coado.
Instrumentos: pano marrom bordô-amendoado, água fervida da pia.
Derramado na panela de inox aquecida para manter a temperatura pelando. Dali vai diretamente para a térmica, que via repousar na copa e durar poucos minutos quando do anúncio do “saiu café novo, gente!”.
No serviço público (a depender do órgão), ainda temos copeiros e garços, que circulam com as garrafas e servem mesa a mesa em xícaras de porcelana das antigas. Em comum: aquele sabor de 8 às 6 de uma quarta-feira - nem tão início da semana para significar energia para encarar a semana, nem tão fim de semana a ponto de dispensá-lo de olho no happy hour.
Vejo se desenhar, assim, um novo fenômeno pós-pandemia, que sela o retorno maciço aos escritórios físicos: a hora do café. Este período não é, obviamente, preenchido pelo tempo de deslocamento à copa somado aos dois minutinhos de assopra-e-bica até esvaziar o copinho descartável. Envolve desde o deslizar dos dedos desinteressadamente pelo feed das redes sociais à manutenção da instituição fofoca.
Muita gente relata perda de concentração e de produtividade no retorno aos espaços de convivência com colegas de trabalho. Isso, graças a esse tanto de hora do cafezinho que a gente se acostumou a tirar e, de repente, na transição para o remoto a prática deu lugar a outras possibilidades - pausa pra varrer chãom, lavar louça, estender a roupa, passear com o cachorro.
Não é regra, obviamente. Tampouco parto de qualquer estudo científico. Mas trago uma especulação reflexiva a partir de testemunhos de amigos e colegas.
Diante da experiência do trabalho remoto, algumas rotinas perderam muito de seu propósito. O cafezinho, por exemplo, se torna literalmente o momento de parar para bebericar uma xícara ou uma caneca. Estaria o remoto decretando o fim do café de licitação? Estaríamos libertos do jugo deste “café moído tipo tradicional” adquirido via pregão eletrônico de menor preço?
O café de licitação revela a gordura do aparato formal do trabalho a prender o trabalhador (autônomo que seja até) sob sempre o peso das horas de serviço executado necessariamente sob escrutínio de chefias, colegas e colaboradores e tudo o mais.
Pois o mundo já discute a jornada de trabalho de uma semana de quatro dias úteis, observando em muitos casos um aumento significativo na produtividade. Essa nem tão nova possibilidade permite uma outra gestão do tempo, que ensaiamos durante a pandemia e, parece, já atrofia a percepção do sistema formal.
Um clássico do cinema brasileiro de 1979, chamado “Muito prazer”, de David Neves, resgatado à memória na forma de meme, traz uma tirada que, visto hoje, é basicamente um statement, uma declaração ousada. A frase proferida pelo personagem de Otávio Augusto sibila semanalmente em um perfil do Twitter dedicado somente a ela: “São 4 horas da tarde de uma quarta-feira, não é? Semana praticamente encerrada”.
O café de licitação aqui é uma alegoria do sistema de trabalho moderno, que outrora fora representado pelas engrenagens da fábrica e aponta para uma rotina da qual não se escapa nem se pretende escapar: o marasmo contemporâneo, teorizado por Michel Maffesoli, em que somos levados de crise em crise a uma lógica da devastação do nosso domínio mental.
Como antídoto, as rotinas, os espaços vazios e a busca de um equilíbrio da atuação profissional com a vida moderna devem ser reivindicados por nós. É decidir mais do que decidir se vai tomar aquele café de licitação com ou sem açúcar. Às vezes é preciso recusá-lo e, melhor ainda, substituí-lo.
Agora, vamos às news:
São Paulo Food Film Festival
Definitivamente, a gastronomia se coloca como gênero cinematográfico. A comida sempre esteve presente na literatura, na pintura, nas artes e, claro, no cinema.
No Brasil, a iniciativa pioneira em reunir títulos em um festival de cinema dedicado à gastronomia foi o Slow Filme - Festival Internacional de Cinema e Alimentação, criado por Sergio Moriconi, Gioconda Caputo e Carmem Moretzsohn, atualmente na 11ª edição e realizado em Pirenópolis (GO) e, atualmente, em Brasília (DF). Ano passado, veio o Matula Film Festival, em Belo Horizonte (MG), idealizado pela Dani Fernandes e com curadoria minha, grande honra. Agora chega um novo evento, de grande porte, diga-se, o São Paulo Food Film Fest.
Começa nesta quarta (5/10) e vai até o dia 12, em formato híbrido, de graça. A programação on-line será realizada sempre às 19h, no streaming do Belas Artes à La Carte. A partir do dia 6, a programação também ocorre na Cinemateca Brasileira e no Espaço Itaú Augusta. São 60 filmes, reunindo na maior parte obras já muito conhecidas. Nas sessões presenciais haverá algumas estreias e, no online, exibições de filmes inéditos. Confira aqui a programação completa.
O baru é pop
Que ano para o baru! O fruto cerratense que nos dá uma castanha das mais saborosas tem se popularizado. Semanas atrás, a chef Ana Boquadi e o chef Diego Badra criaram um menu degustação completo com várias possibilidades do fruto (usando inclusive o mesocarpo, no revestimento externo, com alta quantidade de amido), no restaurante Conca Cozinha Original, em Brasília. Dentre os pratos, havia uma receita de Ana que conheci ainda experimental, um abará feito com a castanha crua demolhada. Uma delícia. O mais legal desta iniciativa, na verdade, foi que ela se converteu em arrecadação de recursos para presentear a agroextrativista de baru Madalena Soares, a Madá, a adquirir uma máquina de cortar baru. Ó que bonito:
Ainda sobre o baru, nesta semana, de 6 a 8 de outubro, pelo quarto ano não consecutivo, em Arinos (MG), acontece o Fenabaru. O Festival Cultural, Gastronômico, Turístico e Socioeconômico do Baru Urucuia Grande Sertão é um festão popular, com atrações do sertanejo, parque de diversões para a criançada e, principalemente, muita comida e promoção de receitas com frutos típicos do Cerrado. Será na Praça do Coreto da cidade.
Coffice do dia: Objeto Encontrado
Em 2016, pouco depois de Michel Temer assumir a presidência, após o descarado golpe parlamentar que impeachtmou Dilma Rousseff, as portas da cafeteria Objeto Encontrado, na 102 Norte, amanheceram pichadas com “Fora, Temer”. O autor desse “vandalismo” foi ninguém menos que o próprio Lucas Hamu, dono do café.
A estética do pixo, como já observava meu mestre e pesquisador do tema Pedro Russi, é a cidade gritando, denunciando muitas vezes injustiças. Os pixos foram dando lugares, aos poucos, a várias outras ações declaratórias e militantes de esquerda, culminando na campanha pró-Lula até o momento.
Mas o sentido da posição política da cafeteria abrange muito mais do que declaração de voto. Acompanhe o raciocínio comigo abaixo:
A Objeto Encontrado posiciona-se politicamente não apenas quando exibe as cores do arco-íris, hasteia a bandeira do Movimento Sem Terra, fixa a placa da rua em homenagem a Marielle Franco ou adesiva a excelente máquina de espresso La Marzocco com o clamor de popular por #ForaBolsonaro.
A cafeteria se posiciona ao servir refeições com ingredientes da agricultura familiar, livres de agrotóxicos e fortalecendo CSAs (Comunidades que Sustentam a Agricultura) e as cadeias produtivas curtas;
se posiciona ao ceder o espaço para abrigar feira de orgânicos de assentamentos do MST;
se posiciona ao brigar com o condomínio onde está instalado pela liberdade de pessoas em situação de rua transitarem livremente pelo comércio;
se posiciona quando, em meio à crise da Covid-19, cria o Projeto Dividir, e transforma sua estrutura em uma cozinha solidária para produzir comida e distribuir marmitas para pessoas e comunidades em situação de vulnerabilidade e insegurança alimentar;
se posiciona ao contratar e investir na qualificação profissional de pessoas (muitas vezes) excluídas do mercado de trabalho por gênero ou raça;
se posiciona ao se associar à iniciativa Amazônia de Pé, distribuindo fichas para recolher assinaturas no estabelecimento em prol da proteção das florestas públicas da Amazônia Legal;
e se posiciona ao servir um café com rastreabilidade de sua produção.
E, além da ótima trilha sonora, faz um bolo salgado de abobrinha incrível, a cheesecake mais lendária da cidade, apresenta um serviço de barismo de altíssimo nível e ainda pode ser um bom lugar para plugar o computador e trabalhar remotamente, com água da casa à vontade.
O ambiente é de uma informalidade bem bicho-grilo, como diriam os coroas (tipo eu), com cadeiras sobre um deck - eles instalaram uma bica, lá, gente! Uma bica! Antigamente, até sediava pool parties em uma piscina inflável. Aproveite o almoço e os momentos de maior ociosidade no meio da tarde, caso deseje estudar ou trabalhar enquanto degusta um dos mais bem tirados espressos da praça.