Esta edição foi escrita acompanhada de um café de variedade obatã, processamento lavado, produzido por Ceci Faria no sítio Santa Catarina em Munhuaçu (MG), torrado pela Sabino Torrefação e extraído pelo método astér.
Restam poucos bares e restaurantes a manter a tradição brasileiríssima de servir café com rapadura ao final da refeição. Hábito, registre-se, aprendido em casa. Coisa que estamos perdendo na transmissão geracional. Nas cafeterias, serve-se o espresso com sequilho, biscoitinho, chocolatinho, já vi até brigadeiro-gourmet-chocolate-de-origem-setenta-por-cento-artesanal, mas a rapadura não mais.
Lembro muito dos versos do grande poeta Nei Lopes, mais conhecido na voz de Beth Carvalho:
Rango de fogão de lenha na festa da Penha
Comido com a mão
Já não tem na praça, mas como era bom!
Hoje só tem misto quente,
Só tem milk-shake, só tapeação
Já não tem mais caixa de goiabada cascão
Sinais dos tempos. As tradições engolidas pela ordem do consumo, da gentrificação promovida pela especulação imobiliária, a economia disfarçada de praticidade da indústria do ultraprocessado e a invasão da música gringa, a silenciar os tamborins. Eis as críticas de Nei Lopes ao novo zeitgeist que batia à porta ao final do século 20.
No mundo do trabalho talvez percebamos - ainda mais evidentemente - esta crônica tão eloquentemente pontuada em partido-alto pelo grande bamba e intelectual brasileiro. As culturas do trabalho, dos processos, das máquinas, dos serviços são rapidamente substituídas.
É a lei da obsolescência programada atingindo o próprio capital humano. De repente, no meio de sua formação, ao final de um curso técnico, assim que se domina o ofício ou na entrega o TCC da pós, acabou. O mundo já requer outros especialistas, outro conhecimento.
Um sinal: a vida é dura.
De tando bater com o osso a dor vira anestesia
O verso catapultado a título de uma das coletâneas do poeta carioca-brasiliense André Giusti inspira-me a pensar nesta dureza da vida refletida na metáfora da rapadura. A textura é osso, a anestesia é doce.
Pois a rapadura, como a vida, cumpre o papel de dureza e dulçor. (Não recorrerei à máxima caetanesca da “dor e a delícia”, porque abusaram dele principalmente durante a pandemia para justificar tudo. Até poderia, mas não vou, embora já o tenha feito, cáspite!).
Tenho aprendido a saborear a dureza da vida. Não digo isso de forma coacheira, mas verdadeiramente. A gente vive se desestabilizando com o amontoado de problemas (sejam eles trampos, boletos ou as tagarelas vozes da cabeça). E, na maior parte das vezes, quando resolvemos não foi porque mudamos as circunstâncias, mas compreendemos o sabor delas.
Ninguém é obrigado a tomar o seu café sem açúcar, avilte o barista, é seu direito. Porque às vezes você precisa mudar o sabor. Mas o amargor do café puro reserva as chamadas notas sensoriais. De igual modo, a rapadura reserva o dulçor para quem vence a mordida.
Um alento: a vida é doce.
Café Fest 2023
Estive este fim de semana em Goiânia e, além de me atualizar sobre a cena gastronômica local - e comer pamonha decente -, aproveitei para dar uma passada no sábado na terceira edição do Café Fest, um festival que reuniu cafeterias da capital goiana e produtores do estado de Goiás no Shopping Cerrado. Dei a sorte de pegar a aula da mestra Isabela Raposeiras, do Coffee Lab (SP), uma das primeiras (senão a primeira) a colocar o café especial na rua como case de sucesso comercial e cultural em nível nacional.
O evento foi ótimo e pude, enfim, conhecer de perto o trabalho do Muy Café, que admiro só por comprar os grãos desta torrefação goiana. A cafeteria situada no Setor Nova Suíça não configura bem um coffice, como costumamos dizer por aqui. É mais um lugar de degustações. Maravilhosos cafés e queijos incríveis. Casamento perfeito. O roteiro completo dos coffices de Goiânia será publicado aos poucos durante as próximas semanas, neste espaço.
De Brasília, estavam lá os estandes da representação da capital da máquina italiana La Marzocco e da turma do Civitá, além da consultora, mixóloga, barista e amiga Mari Mesquita, que tava toda atarefada e só falei de longe.
Pode-se dizer que Goiânia tem uma cultura urbana do café especial ainda muito jovem, porém o estado tem clima e solo muitíssimos favoráveis ao plantio de Arábica. Veremos muita coisa por aqui dessas bandas de GYN, viu, guerreirada?
Coffice da semana: Subverso Coffee Culture (GO)
O roteiro de cafeterias da newsletter Coffice chega a mais uma praça: Goiânia (GO). Aliás, deixe-me reforçar um pedido que fiz lá no início desta publicação: enviem pra mim suas indicações de coffices pelo Brasil e pelo mundo, que a gente publica e credita por aqui.
Um espaço discreto em meio a uma galeria no Setor Bueno de Goiânia esconde um dos maiores tesouros da recente (e crescente) safra de cafeterias da cidade. O Subverso Coffee Culture, como o nome declara, assume para si a missão de fomentar a cultura do café especial. Cultura esta que começa nas próprias relações com agricultores e promove a mediação deste trabalho até o consumidor final.
Aqui a seleção de cafés é cuidadosa, o serviço de barismo profissionalíssimo. Fui atendido pelo barista Lucas Silop no balcão e pela Jennifer, simpaticíssima, à mesa. Provei pela primeira vez o método astér, um coador de madeira com hastes anguladas, desenvolvido pela Woodskull, permithá indo uma extração de diluição peculiar.
No extenso cardápio, há desde releituras de clássicos de cafeterias (como um croque madame renomeado como ofensa pela adição de bacon, ovos ao purgatório e as toasts) a bolos, pães e sandubas. A cumbuca de salada podia ser mais subversiva e eliminar o infame “bowl” do glossário. Para beber, um refrigerante “comunista” da casa (água tônicas com limão e mel de beterraba mais cravo) e um chá mate gengibrado, além de drinques à base de gin.
Na decoração, aquela afetação hipster básica que até gostamos. A subversão fica a cargo das verdades da evangelista da comida política Flávia Schiochet. Qual não foi minha surpresa ao ver os lambe-lambes produzidos por ela na lojinha fogo baixo muito bem aplicadas no contexto do Subverso.
A casa costumava praticar a torra, mas interrompeu o processo. Está em fase de remodelagem da loja, inclusive, talvez para acomodar pessoas em coworking no mezanino. Enquanto isso, o cliente pode ficar à vontade par pedir o wi-fi, uma água da casa e plugar o computador nas tomadas.
Não há muito espaço, portanto, tenha juízo, guerreirada! Lembrem-se de recorrer ao nosso manual de boas práticas para clientes e cafeterias observarem a melhor forma de convivência diante da demanda contemporânea do uso do café como escritório.
Humm lembrei do Josefina, ali no sudoeste, que sempre serve rapadurinhas com o café. Valorizo