Esta edição foi escrita acompanhada de um v60 de varietal gesha, produzido por Romulo Andrade no Carmo do Paranaíba, no Cerrado mineiro.
A vida é como receita de bolo.
Antes, é preciso desmistificar. O termo “receita de bolo” ganhou má fama de tapa-buraco - no jargão jornalístico chamamos de calhau, um naco de texto oportuno usado para cobrir ausências editoriais. Era um recurso muito utilizado, aliás, na resistência contra a censura imposta pela Ditadura Militar. Jornais publicavam receitas de bolo, que cumpriam o papel subversivo de denunciar o silenciamento autoritário do Estado por meio de receitas escritas pela metade com evidentes problemas nas fórmulas - há uma matéria da Vice que conta essa história.
Mas receita de bolo não é só receita de bolo. Você faz o melhor mise-en-place, mas pode dar certo e pode dar errado. Queimou a borda, solou, derramou, pegou no fundo mal untado. Bateu demais, bateu de menos. O controle dos ingredientes, as medidas, os processos para se fazer um bolo ganharam, no nosso imaginário, um falacioso estigma da precisão.
Na gastronomia é comum se dizer que a cozinha fria (na qual se enquadra a confeitaria, portanto a boleria) pertence ao campo do método e do apuro técnico, enquanto a cozinha quente se abre ao improviso e ao instinto. Em muitas medidas, essa percepção equivoca-se. Pois receita prevê ordenamento, enquanto comida requer considerar o aspecto vivo, sazonal e temperamental vivo dos ingredientes.
E é por isso que receitas dão errado. Aliás, são de receitas erradas que nasceram bolos dos mais bem sucedidos: brownie e petit gateau são ótimos exemplos clássicos, ícones da confeitaria comercial sem as quais poucos restaurantes parecem conseguir sobreviver. Foi de um improviso (senão erro mesmo) que surgiu o coffeecake (bolo de café) tão famoso do Acervo Café. Na ausência de um dos ingredientes úmidos, Abigail Lins, uma das proprietárias, resolveu corrigir a consistência da massa do bolo com… café. Sucesso!
Pois é isso que buscamos na viva: uma receita de bolo. Na metáfora, podem ser várias. Queremos receita para emagrecimento, para a juventude, para a felicidade e para a vedete do mundo do trabalho: o sucesso.
Este se impõe como objetivo maior da colheita regada pelo suor do esforço da jornada laboral. E tem gente que acerta de primeira. E num infame bolo de caneca! Mistura tudo ali, dois minutinhos no micro-ondas e, voilá! Sucesso! De outro lado, há quem se esmera a aperfeiçoar a receita mais sofisticada, produz um belíssimo entremet com dezenas de microcamadas e as mais esmerilhadas técnicas de glaçagem, mas o tal sucesso não chega.
É a celebridade infantil que viraliza da noite pro dia e pode, como Justin Bieber, pensar em aposentadoria aos 29 anos; e é o agricultor com 70 de mãos calejadas ainda a trabalhar pela lavoura do mês seguinte.
O problema da receita de sucesso para o mundo do trabalho está no próprio resultado: a noção de sucesso. Sucesso pode ser tanto “apenas” a dignidade do serviço como o esbanjar narcisista de quem já colocou no carrinho da Amazon todas as wishlists possíveis para três vidas.
Medir sucesso no mundo corporativo do cobra-come-cobra tem menos a ver com uma receita e mais com uma cultura que atribui qualidade à ganância enquanto empobrece as verdadeiras virtudes - gosto de pensá-las como os frutos do espírito, da tradição paulina/cristã: amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio. “Contra essas coisas não há lei”, conclui o apóstolo na epístola endereçada ao povo conhecido como gálata.
Neste multiverso do lado de cá, da imanência da exploração e da autoexploração para fins de realização, a lei é a da produtividade. É a vida que orbita em torno do trabalho, portanto, a receita do sucesso vai ser como a do bolo: suscetível às agruras e imprevistos do preparo. O resultado será, muitas vezes imprevisível. Pode dar certo, pode dar errado. Mas o certo não será necessariamente melhor e o errado pode revelar o melhor segredo da fórmula.
Coffice da semana: Studio Grão Coffee Roasters (DF)
Mais do que vocacionado para nosso escopo do coffice, ou seja, uma cafeteria com estrutura para receber praticantes do trabalho remoto (o que não se configura coworking, tá gente? Basta ler nosso manual aqui), o Studio Grão Coffee nasce com um projeto ousado de laboratório de experiências e torrefação. É literalmente um estúdio dedicado aos grãos.
Conheci o Studio Grão quando ganhei um café no sorteio, e fui presenteado pela barista Juliana Morgado. Além de talentosa confeiteira (embora não pratique ali essas habilidades), ela se dedica também à programação de cursos e degustações. Acompanhem a página da marca para se inteirar. E o Studio Grão também desenvolve blends para outras cafeterias e restaurantes, e também embala para o público ótimos cafés em enorme variedade, dos bourbons básicos ao idiossincrático gesha, indicado ao início do texto.
No menu, há as tradicionais torradonas bombadas de cafeterias moderninhas, meio bruschettas meio smørrebrøds, chamadas pelo estrangeirismo toast. Vários preparos clássicos, cesta de pães, uma ótima focaccia com um pesto de lado. O diferencial são as tábuas com harmonizações de cafés compondo pares com comidinhas apropriadas para cada método.
Este perfil do Studio Grão é convidativo à experiência. Portanto, uma boa oportunidade de fugir da zona de conforto, entregar as escolhas para a equipe de baristas e se deixar surpreender. E você pode fazê-lo enquanto trabalha. Há wi-fi e tomadas estratégicas. O banheiro que é meio um trampo, pois é preciso recorrer ao do condomínio, na galeria onde a cafeteria está instalada.