Esta coluna foi escrita acompanhada de um cappuccino
Igualmente ao produtivismo e as estratégias de desempenho pessoal e coletivo no trabalho remoto é discutir o descanso, o bem-estar e, no limite, a felicidade. Ah, a felicidade esta que “foi-se embora”, mas que também está em “tomar um café reforçado/ cantar Odara até o sol raiar” é o grande McGuffin deste filme chamado vida. Queremos felicidade também no trabalho, apesar dele, mas, talvez, a depender dele. O resultado dessa busca veio com a hora feliz, a happy hour.
O termo nasce do militarismo - especificamente da Marinha norte-americana em contexto de Primeira Guerra Mundial. E até hoje carrega essa logística cronometrada dos marinheiros. É lazer com tempo marcado. Nem mais, nem menos. Uma hora. Depois que a coisa enveredou para significar promoções de bebidas, também marcada no relógio.
Trabalhador não pode nem querer ser feliz que logo o relógio bate 19h (ou 20h, no caso do Brasil) encerrando a dose dupla de chope os petiscos 15% off. Happy hour não é uma unanimidade. Longe disso. Há países (Irlanda e o Liquor Act é o caso mais notório) em que a legislação proíbe frontalmente happy hour, por motivos de promoção da intoxicação por álcool. Há estados norte-americanos que também o sustentam.
No Brasil, que hoje volta a participar da lei da gravidade, da rotação e da translação do globo terrestre, proibir o povo do acesso a esta hora feliz licorosa seria a última pá de cal desta terra embrutecida pelos retrocessos, mas ainda afeita à busca pela felicidade no fundo do copo - seja lá o que isso signifique para cada qual, não há juízo de valor quanto a isso.
A happy hour subestimar o nosso poder da busca pela felicidade e, ela própria, mesmo em seu nobre propósito, nos encarcera. Estamos na gangorra da vida laboral, no automático e não nos tocamos que o dia resume-se ao final, depois das seis, ao gole gelado do chope Brahma aguado, crachá a arrastar-se pela espuma do colarinho da tulipa, gravata pintada de gotas de óleo do frango à passarinho mal secado… tudo isso tendo como recompensa o desabafo contra os irritantes microgerenciamentos da chefia e a atualização das fofocas da firma - sob o risco de morte social.
Em tempo: cafés - os coffices mesmo dos que tanto tratamos aqui - têm se tornado cada vez mais adequados a receber o proletariado ao crepúsculo. Esse movimento tem aumentado no Brasil. Muitos empreendimentos optam até por não abrirem pela manhã e fazem o expediente da hora do almoço até de noite. Não é bem uma novidade ou algo estranho. Pelo contrário.
Cafeterias são irmãs dos botecos. Aliás, muitos botequins ao redor do mundo nasceram de cafeterias ou com elas se confundem. Na cultura urbana europeia, tomando a Itália como exemplo, a cafeteria pode abrir cedinho com espresso e croissant para fechar com o aperitivo das 17h ou até mais tarde, valendo baladinha e drinques. A mixologia muitas vezes compreende o barismo que, por sua vez, influencia a coquetelaria. Em algum momento das trocas e hibridismos culturais, esses dois negócios se nicharam - cada qual para o seu lado. Em próxima edição especial faço uma lista de lugares com esse perfil para vocês conhecerem. Se liga!
Sentado defronte ao balcão de taps artesanais ou naquele mesão centopeico avançando pela calçada e os cascos dos litrões avolumando-se para serem contabilizados no passar da régua, a happy hour se tornou uma instituição democrática. Restaurantes grã-finos ou de rede, boteco de esquina ou speakeasies hipsterizados congregam toda sorte de gente em busca da felicidade advinda da alforria do jugo das horas trabalhadas.
A compensação do trabalho para além do salário (gordo ou magro, ou inexistente) consiste em um refrigério para a mente. No entanto, a gente participa diuturnamente de uma lógica de produtividade e descanso um tanto cruel. A felicidade com hora de acabar, a ser reabastecida só no outro dia. E no outro dia e no outro. Pois nunca chega.
Digo que essa rotina em torno do ideal da felicidade para dentro do trabalho também não deve se apresentar como aquela suposta satisfação do “fazer o que ama” (já discutimos isso aqui. Estamos falando de uma felicidade a ser encontrada nos escapismos da rotina. Mas que sejam também alimentos de uma esperança que se renova para além do ciclo das 24 horas, com um momento prensado entre o fim do expediente e a volta pra casa.
Eis que começa um 2023 de reconstrução. Inclusive da felicidade. Uma hora somente, como o Telefone de Renato Matos (entoado durante a posse de Lula ontem), é muito pouco quem “ama como um louco”. Que seja este um momento de anelo fervoroso, não apenas para o anúncio radiofônico “Em Brasília, seis horas da tarde”, a marcar mais uma happy hour.
Já que acordamos de um pesadelo - sobretudo para os direitos trabalhistas e para a própria sensibilidade humana e o exercício de empatia -, que trabalhemos, guerreirada, mas por um ano todo de felicidade. Tocou a hora do happy year.
Um feliz ano novo pra vocês!
Coffice do dia: Together Cafés Especiais (DF)
Falamos em outra ocasião por aqui, sobre esta pequeníssima e escondida cafeteria em outro contexto, nas nossas listas para assinantes pagos (aproveitem, tá?). Mas há muito queria resenhá-la para este espaço. E não é porque recomendo como um coffice, sabe? Mas é porque representa uma possibilidade de coffice. Explico.
Together é uma microtorrefação do Lago Norte, em Brasília (DF), da qual era cliente até. Fazem bem esse trabalho fundamental de elevar os grãos selecionados pelo agricultor ao ponto de torra ideal para se extrair o elixir do qual depende esta publicação - e, convenhamos, boa parte da produção de força de trabalho no mundo. Há poucos anos se instalou no Espaço Aroeira, uma megaloja de plantas e coisas pra jardim onde se percorre uma charmosa e bucólica vila (a Vila Canarinho) por entre cafeterias, empórios, coworking, espaço de yoga, praça ao ar livre e até restaurante, ao final da estrada.
No meio estará a casinha charmosa do Together. A torrefação mudou-se para lá, onde também você pode passar para tomar um espresso, um v60, acompanhado de uma banoffee de pote da moda, brownie e outros acepipes. Costuma trabalhar com uma linha de cafés bem locais (GO e DF). Não há bem espaço para fazer um coffice, mas já o fiz, algumas vezes. É bem agradável para ficar por um par de horas trabalhando sossegado, principalmente no meio da semana, sem muito movimento. Não é muito apropriado para tanto, porque as poucas cadeiras não servem bem a esse propósito. Indico mais para quem procurar avançar numa leitura em meio ao verde, acompanhado de um bom café.
Viver apenas nos intervalos dos expedientes cada vez nos satisfaz menos né. Espero que a gente consiga equilibrar melhor nosso tempo e nossas prioridades um dia :) Beijos e adorei essa edição! Excelente 2023 pra gente 🌻