Trabalhe com o que ama?
As profissões vivem sua maior mudança nesta geração e ainda não superamos seus estereótipos
Esta newsletter foi escrita acompanhada de uma prensa francesa tirada a partir de um blend do Scada Café, com grãos de arábica, da variedade bourbon (vermelho e amarelo), da Serra da Mantiqueira.
Veio pandemia, foi pandemia, e ainda olhamos para as profissões do mesmo modo. As dinâmicas do mercado de trabalho idem. Reduzimos e estereotipamos pessoas sob o juízo lançado a pretexto do ganha-pão alheio. Tomo aqui os exemplos das minhas atividades - mas é possível estender as generalizações a todas outras.
Quando falo do meu trabalho de crítico de restaurante rapidamente surge alguém morrendo de inveja. Não de mim ou da atividade, mas do imaginário reducionista e caricato do sujeito temido, que come de graça - e a quem a cozinha se mobiliza para agradar. “Poxa, você ganha pra comer?” Que maravilha!
Mal sabe que o exercício maior desta atividade é o da escrita (ou da produção de conteúdo, nome genérico para abranger o multitasking de todo mundo que comunica nesses tempos). Aliás, maior ainda é o exercício mental, a atenção aos detalhes, as décadas de estudo, a construção de repertório… nada disso sai barato ou é fácil de se entregar.
Quando era repórter cultural em jornal, lidava com gente da mesma profissão achando que não precisava de folga ou hora extra para compensar a cobertura de um show tarde da noite. “Era diversão!” Ora, cultura e gastronomia, assim vivo, é divertido quando não é trabalho - sem o jugo da pauta, a responsabilidade de escrever, a abdicação de outros deveres ou desejos.
Trabalhe com o que ama e nunca mais precisará trabalhar na vida, diz o ditado atribuído a Confúcio
Pois a máxima foi atualizada em meme para tempos de burnout e workaholismo:
“Trabalhe como o que ama e nunca mais vai amar o que gosta”, frase perpetuada na forma de prints ou cards desmotivacionais.
A verdade é que estamos o tempo todo trabalhando e sendo definidos por estas atividades que desempenhamos.
É dentista interpelado num churrasco de sábado pelo amigo para ver uma cavidade no dente do filho; o cara da TI para quem os tiozinhos pedem pra resolver problema no backup do zap; o arquiteto convidado pra um lanche em sua casa pra dar uma opinião sobre a reforma da cozinha; o fotógrafo chamado para cobrir a festa de 15 anos “pra ganhar visibilidade”; uma artezinha pedida pro designer “pra fazer portfólio”; um textinho pro jornalista; uma dietinha rápida pra nutri.
“Não me peça para dar de graça a única coisa que tenho para vender”, proclamava sabiamente a atriz Cacilda Becker.
Ao professor é, talvez, relegado um dos piores tratamentos. Ninguém pede uma aula de graça, mas…
Não basta o baixo piso da categoria para a enorme responsabilidade, a falta de estrutura (providenciada pelo próprio, sem compensação) e a hora/aula calculada estritamente (no mercado privado) pelo tempo que está em sala. Pesquisa, planeja, escreve, publica, revisa, corrige, ufa!
Pra no final ouvir do aluno: “Mas você trabalha ou só da aula?”.
Parece não haver mais nada na personalidade das pessoas, a não ser a profissão. Constrangidos, dizemos que desempregados ou #opentowork; vaidosos, respondemos que empreendedores ou “CEOs”.
“Você é o quê?” ou “o que faz da vida”? A resposta: profissão.
O ser profissional elimina o ser pessoal, relacional, transcendental. Espero um dia podermos nos identificar livres do peso da categoria laboral, talvez até invocando atividades pedestres do dia-a-dia ou momentos de ócio. O que faço? Feira, aos sábados. O que sou? Colecionador de coisas sem importância.
Agora, vamos às news:
Acabou banoffee
Acabou banoffee, ficou tudo doido.
Inventei de dar trabalho à minha amiga Cyntia Ashiuchi, a Sushi.
Confeiteira, faz tudo de manhã cedinho, na raça e na fé fé fé.
Da sua cozinha sai banoffee, sai donut e tem sua fama garantida
No bo bo bolinho.
Tem que pegar com ela, na Asa Norte, em Brasília.
O apelido da Sushi deriva do sonoro sobrenome, o qual revela sua identidade nissei. Ecoou pelas ondas da rádio. E o poder do rádio em 2022, centenário da primeira transmissão no Brasil, diga-se, é enorme.
Fui falar da banoffee da Cyntia na minha coluna, na rádio CBN. Ela confere outra camada de sofisticação ao pavê inglês, que virou moda, ao acrescentar missô.
Essa pasta de soja fermentada, tão versátil, empresta a pujança do umami a um doce comum da terra que precisou pegar tempero emprestado dos vizinhos do outro lado do mundo (não necessariamente da maneira cortês, como o imaginário da corte britânica sugere).
O povo demandou mais do que a oferta, foi-se tudo pra encomenda.
Vi a confeiteira exausta na lagoa que virou seu apê após esquecer-se de fechar as janelas, sem atentar-se à repentina chuva primaveril rompendo a estiagem.
Acabou banoffee no meio da Asa Norte.
Faz humm! humm! pra ela ver. Talvez volte pro menu.
Memórias na mesa
Bela iniciativa da chef, jornalista e agitadora cultural, Lúcia Leão. Ela comanda o Espaço Cultural Leão da Serra, no Taquari (DF) e, há mais de década, promove encontros musicais e saraus literários sempre mediados pela comida.
Agora ela apresenta um projeto com patrocínio do FAC (política de fomento público do DF) chamado Gastronomia Candanga - Memórias na Mesa. Trata-se de uma webssérie a estrear nesta terça (27/9), 19h, no canal do YouTube do Leão da Serra.
São oito episódios, lançados semanalmente, até o dia 15 de novembro. A cada filme, Lúcia recebe artistas e autores de várias partes do Brasil, porém, radicados em Brasília. Ao fogão, ela cozinha uma receita da terra do convidado.
A série abre com o vizinho de Lúcia, o multiartista e compositor baiano Renato Matos, com receitas de acarajé, vatapá e caruru (justo no dia de Cosme e Damião). Segue na semana seguinte com a escritora paraibana Ana Rita Suassuna e um baião de dois com carne de sol.
Na sequência: Ângela Barcelos Café (11/10, com frango com pequi), Roberto Corrêa (18/10, com canjiquinha), Maria Lúcia Verdi (25/10, com arroz de carreteiro), Maria Maia (1/11, com pato no tucupi), Sérgio Duboc (8/11, com picadinho carioca) e Alexandre Ribondi (15/11, com moqueca capixaba).
Coffice do dia: Scada Café
Shopping centers não são bem espaços convidativos para momentos de um agradável café - ou que permita desenvolver atividades laborais remotamente, como no caso da comunidade Coffice. Até que me deparei com o Scada Café. Não conhecia a marca e a primeira impressão não foi das melhores. Hoje sou cliente um tanto regular.
Parei na unidade do Venâncio Shopping em Brasília por força de uma reunião que teria ali. Já havia tomado café, e pedi qualquer coisa para comer, da qual não me lembro. Mas logo percebi se tratar de uma franquia. Este é um modelo de negócio em que uma matriz controla (ou mesmo produz) a comida ali servida. Muitas vezes trabalha com congelados e o café, ah, o café, na maioria das vezes, é um desastre.
Há, claro, as infames grandes redes, como Statbucks, Dunkin’ Donuts e a nacional Fran’s Café, nas quais nem o café se salva. O Scada conseguiu encontrar um lugar no meio: expandir, garantindo, ao menos, a qualidade do café. Os blends da casa são ótimos - há um, que saiu de linha, chamado Paixão, que fazia jus ao nome.
Fórmulas e variedades clássicas: bourbon vermelho e amarelo em métodos variados. Atendimento atencioso e um bom espaço para se trabalhar em cadeiras muito confortáveis. Bom wi-fi e água da casa filtrada a pedido. No cardápio de comida, dispenso as tortinhas e salgados: fazem um bom ovo mexido, finalizado com presunto de Parma e torrada.
Ah Lobão, mas toda semana eu penso que valeu muito a pena ter te pertubado o juízo pra criar uma newsletter! <3