Esta edição foi escrita acompanhada de uma moka a partir de grãos do nanolote Café do Juka, um catuaí amarelo produzido, torrado e embalado pela Fazenda Juca Pinto, em São Miguel do Anta, Sul de Minas.
A frase que mais ouvi em todas as minhas atividades profissionais mal remuneradas e precarizadas foi de que “tal coisa é uma cachaça”: a redação de jornal, a sala de aula e até a escrita independente. Evidentemente, a afirmação parte de um apego inato a quem, como eu, apaixona-se e apega-se ao ofício, muitas vezes por suas características mais tóxicas.
Cachaça, pois - em alguma medida - um tóxico. Mas poderia ser café, alucinógenos, zolpidem, chocolate, adrenalina e, claro, trabalho. A metáfora da cachaça calhou muito bem no jornalismo, para mim, justamente pela rotina de redação. Quando foca, fiquei particularmente entusiasmado com aquele batente de duas medidas de exaustão para uma dose bem forte de excitação que a cobertura jornalística proporcionava. De outro lado, literalmente, a galera da redação escapava depois do fechamento para um finado bar aqui de Brasília chamado sugestivamente de 2º Clichê (quem pegou a referência, pegou!). Era uma cachaçaria curiosamente.
Em tempo: Sou um camarada que nunca bebeu. Comecei tardiamente a apreciar bebidas alcoólicas por força do ofício (crítico gastronômico que não sabe beber é dose - desculpe-me o trocadilho). Gosto e hoje posso dizer até que entendo um par de coisas em nível mais aprofundado, mas não mantenho o hábito. “Só bebo a trabalho”, costumo dizer. Não conheço a sensação de transe da birita, muito menos a da ressaca. Por ser uma experiência tardia, a rebordosa me veio em forma de refluxo apenas.
Mas tenho, como todos, minha cachaça (podemos valer do plural também). Por muito tempo a cachaça era realmente o trabalho em redação. Abusava do tempo por lá, adiantava muita coisa, queria descobrir outras tantas e escrever quanto mais. Esse é um vício-fenômeno já muito estudado, ao qual nos referimos como workaholism, sendo o laricado que o pratica um workaholic por definição.
Confesso não ter empreendido qualquer esforço de pesquisa para conceituar ou entender a origem do termo. Parto do lugar-comum mesmo, que você e eu podemos facilmente reconhecer sem explicações mais profundas.
Esse fenômeno não é de hoje, mas tenho pensado muito em como o workaholism abre para uma reflexão sobre os privilégios no mercado de trabalho. Ora, o workaholic, em certa medida, até se orgulha em sê-lo. Confere status ao CEO, ao aspirante a executivo ou ao espírito do jovem empreendedor/trabalhador obstinado que também sonha em trabalhar enquanto eles dormem.
O avesso do workaholic, neste caso, não é o vagabundo (sobre o qual falamos semanas atrás) mas o trabalhador explorado, muitas vezes precarizado ou, algumas, vezes escravizado mesmo - vide o recente caso da libertação de 207 pessoas, que viviam sob o jugo de uma empresa contratada pelas vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi no Sul do Brasil.
Falamos de pessoas trabalhadoras no que convencionamos chamar de subempregos. No comércio informal, na prestação de serviço de empregadas domésticas e demais categorias, vemos algumas das pessoas mais aguerridas do mercado de trabalho. São workaholics por necessidade e não por desejo. A realidade se impõe.
Socialmente são as pessoas muito trabalhadoras aparentemente, realizando atividades em todos os turnos, feriados, fins de semana…, que nossa sociedade convencionou a achar saudáveis. Elas não o são e muito menos o sistema que delas exigesse isso.
O filósofo Byung-Chul Han, em sua Sociedade do Cansaço, desmonta toda essa construção perceptiva do trabalho multitarefa (o multitasking), tida nos RHs da vida como virtude.
“(O multitasking) não representa nenhum progresso civilizatório. A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção, indispensável para sobreviver na vida selvagem.
Byung-Chul Han, em A Sociedade do Cansaço
Selvagens! O jornalista espanhol Julio Camba faz, pra mim, a melhor leitura desta sociedade da selvageria de concreto e industrialização: “Progresso, não civilização”. Acho difícil Han, que é um acadêmico coreano radicado na Alemanha, ter lido essa consideração de Camba, registrada, até onde sei, só num livro do Câmara Cascudo. Mas eles se completam maravilhosamente bem. Camba diria ainda que o que chamamos de progresso nos colocou numa condição de animais selvagens dominados, como em um zoológico. Tal animais encarcerados, habituamos a tomar nossas refeições sem qualquer espontaneidade, senão nos horários permitidos pela agenda do trabalho.
Essa é a cachaça do nosso tempo. Tomamos, nos embriagamos e padecemos sob o jugo desse vício do qual não queremos nos livrar e sequer podemos, pois é a vida que agora deve se adaptar ao trabalho e não o contrário.
Coffice da semana: Clarice Café (DF)
Trouxe um coffice instagramável pra vocês hoje. O Clarice Café, situado na 112 Norte, se inspira em Clarice Lispector e deixa bem claro isso. Distribui pílulas de sabedoria da autora ucraniana radicada e logo naturalizada brasileira por toda a loja. O adereço mais atrativo para a clientela, contudo, não é apenas a homenagem a uma das maiores escritoras da literatura brasileira, mas a distinta decoração.
A cafeteria é toda “desenhada”. As mesas, as cadeiras, as paredes, os portais, são todas brancas, com traços pretos contornando cada objeto e ornando a decoração das paredes, para criar a ilusão de ótica 2D, como se estivéssemos dentro das páginas de uma história em quadrinhos ou de um desenho animado. Num momento em que estamos pensando em abrir cafeterias no metaverso, essa perspectiva me parece interessante.
Quando estive por lá, inclusive, consegui por sorte um dos disputados lugares, no sofazinho interno e logo se formou uma fila de espera. Um influencer teria colocado a cafeteria no mapa dias atrás e o alvoroço seria consequência de tal postagem, disse-me a proprietária, Greice Malheiros, obviamente fã de um café e de um livro…. de Clarice, sobretudo.
A casa trabalha com um cardápio um tanto objetivo, com uma variedade de tortas na vitrine, afora croissants e demais itens típicos de café da manhã (ou da tarde). No balcão da barista, saem v60, aeropress e espressos de blends produzidos e torrados especificamente para a casa, a partir de microlotes, sobretudo da região da Matiqueira, de Minas Gerais.
Pode ser um lugar muito adequado para um coffice. É preciso se atentar ao movimento e, claro, seguir o nosso manual de modos de usar uma cafeteria para trabalhar remotamente.