Esta edição foi escrita acompanhada de um café coado Melita da edição Gourmet, com grãos da região da Mogiana Paulista.
Todo sistema meritocrático da performance do trabalho aponta para o destino de uma carreira. Com a nova realidade da empregabilidade, ficou ainda mais urgente (necessário, embora não necessariamente melhor) a diversificação das habilidades, dos contratos, dos conhecimentos e dos métodos de se fazer o ganha-pão. Pois, diante destas novas circunstâncias que se impõem, aquele argumento motivacional de “sair da zona de conforto” também precisa ser (re)considerado.
Primeiramente, devemos lembrar que este termo nasce com toda a legitimidade nos estudos de psicologia. Não sou nenhum estudioso desta área, mas como acadêmico e jornalista mantenho o saudável hábito de me guarnecer de informações e teorias mais aproximadas possíveis para fins de uma argumentação não falaciosa. Portanto, não vou mergulhar no que a psicologia trata, mas compreendo que o problema desse sistema de conforto no plano mental do ser humano é porque pode levar a uma condição mesmo de aprisionamento intelectual, crise de autoestima ou esconder doenças seríssimas, como depressão e outros transtornos da psiquê, tornando a saída da zona de conforto um imperativo.
As perspectivas teóricas da psicologia apontam para caminhos não exclusivos da produtividade laboral, como podemos ver, mas para um fenômeno mais amplo. Agora, há diversas linhas de pensamento: desde a tal da conscientologia (que prega haver inúmeras categorias de zonas de conforto) ao jargão banalizado popularmente como forma de se apegar a novas coisas ou atingir o tão desejado sucesso. No meio desse percurso, as iniciativas de gestão de pessoas e, sobretudo, os coaches começaram a surfar no lugar-comum do “sair da zona de conforto”.
Isso já está discutido. Deixar a zona de conforto seria algo importante ou até fundamental para se desenvolver na carreira, superar ou conquistar algum objetivo financeiro prático, etc. E não é sobre isso que desejo argumentar.
Prefiro perguntar: que conforto? Quem já passou por situações de desemprego, de bancarrota e de crises em geral certamente sonha com a tal zona de conforto. “Mas crescemos na crise”, defenderia o coach mais afobado de plantão. Sim. Crescemos fora de crise também.
Alimentamos a zona de conforto com desconforto. Afinal, zonas de conforto também podem representar aquele momento ou dia em que não queremos guerra com ninguém. Mas o imaginário da zona de conforto tornou-se esse aprisionamento do trabalhador que, para atingir o sucesso, precisaria chutar o balde, mudar de carreira, fazer um novo curso, se mexer para experimentar, fatalmente, o sucesso que virá com o salto de fé, que costuma vir com o conselho do “saia da sua zona de conforto”.
Sempre fui o detrator de zonas de conforto até perdê-la (para falência, para o desemprego etc). Esse ímpeto motivacional encontra seu auge lá pelos 30 anos da pessoa trabalhadora — ao menos da que começou a trabalhar cedo. Nunca fiquei mais de dois anos em uma mesma função. Nem na firma onde estive empregado por mais tempo: 12 anos.
Era chegar numa zona de conforto e logo pegar o comboio para uma nova trincheira da guerra corporativa. Sangue no olho. Hoje, com os sustos da vida, valorizo uma CLT (cada vez mais rara dentre nós), um empreguinho público com a tal estabilidade. Sim, problemática a estabilidade, pois contribui para a atrofia profissional, por outro lado.
A questão é ponderar o que seria esta zona de conforto. Pode ser o sonho da classe trabalhadora, de finalmente ter uma jornada de trabalho reduzida, por exemplo? Por que não? “Ah, mas você nunca vai superar seus limites ficando na zona”, diriam. E aí está o grande problema contemporâneo da percepção do trabalho neste era da meritocracia: tudo tem que virar disputa, concorrência, guerra, olimpíada. Não basta escalar a rocha, tem que ser a mais alta. Calma, gente!
É tempo de ressignificar a zona de conforto. Até buscá-la ou, ao menos, conhecê-la melhor. Sobretudo, para tempos desconfortáveis, às vezes vai bem optar por estacionar na sua zona de conforto e aproveitá-la sem a culpa autoinfligida ou o olhar condenatório dos mentores. Dê um tempo na lista dos livros que inspiraram Warren Buffett e vá pegar um romance, estimular a fantasia, viver o conforto da sua zona.
Coffice da semana: Café e um Chêro (DF)
Para early birds como este que vos escreve, o Café e um Chêro cumpre razoavelmente bem o papel de um coffice. Explico: esta casa, originalmente fundada na Asa Norte de Brasília (109 Norte), surgiu no início da moda da comida afetiva, voltado muito para o serviço culinário mesmo, com ótimos preparos de cuscuz, bolos caseiros e rangos entre a tradição maranhense e o repertório pop das lanchonetes brasileiras. Casa toda decorada com bibelôs vintage, água da casa no filtro de barro, cabaças penduradas como decoração.
Negócio de mãe e filho, muito apropriado para quem busca um descanso mesmo e bate-papo com comida farta — aliás, experimentem a coxinha frita na hora, o sanduba de carne de panela no pão francês (dica: acrescente banana-da-terra frita) e, claro, o pudim e os bolinhos de Dona Alba. O café é bem daquele coadinho de roça. Melhorou o grão (da última vez que estive por lá usavam Mokado). Não esperem variedade enorme de cafés especiais e métodos.
Também não é o melhor lugar para se abrir o PC e começar a trabalhar. Mas é possível. Por isso está aqui no destaque da semana. Wi-fi para clientes, embora tomadas não estejam à disposição estrategicamente. E digo que é para early birds, pois depois das 9h já não tem mais onde sentar.
Mantém uma unidade na Rua da igrejinha (107 Sul) e está em pleno processo de expansão (espero que não perca a qualidade com isso). Agora têm unidades menores também no Iguatemi Brasília e no Mané Mercado Vírgula.
Só lembrei daquela sempre atual tirinha da fábula do freelancer: alpiste todo dia tem o seu valor.