Esta edição foi escrita acompanhado de uma v60 preparada a partir de grãos bourbon amarelo da Fazenda Estrela Carvalho, do Cerrado Mineiro, torrados por Anero Café.
Dia desses, certo empresário do mundo das finanças teve a infelicidade (para não dizer a estultícia) de não medir as palavras e comparar seu trabalho de empresário com a escravidão. A ESCRAVIDÃO! Apagou o post, claro, pois por óbvio não é comparação que se faça. E este é um dos grandes problemas contemporâneos: mensurar as nossas dores.
Carrego uma frase de um amigo pastor, que retenho pela enorme sabedoria contida no breve verso: “a dor que dói é a dor que dói na gente”. De um lado trata de um convite à alteridade. De outro à impossibilidade de se compreender a vivência do outro. E no mundo do trabalho acontece na mesma medida. Pessoas sofrem. Patrões e empregados; clientes e prestadores de serviços. São dores diversas.
Curiosamente - muito curiosamente, veja - prestei uma prova neste domingo, na qual uma das questões trazia exatamente o poema de Drummond que me veio em mente e citava neste artigo: “Igual-Desigual”. Mas edito aqui para colocar o trecho selecionado no certame, muito adequado para a compreensão da ideia do autor:
Todas as guerras do mundo são iguais
Todas as fomes são iguais
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou
coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.
Há muitas formas de se interpretar esse Drummond, mas não desejo oferecer a minha. Apenas, a partir dela, guiar essa ideia das relações de trabalho para um patamar adequado à discussão. Longe de mim (vocês me conhecem, senão, voltem aos textos anteriores) eliminar a velha disputa de classe da equação. Mas quero adereçar à condição humana elementar da dor.
E a servidão é uma dor. Das maiores. Por outro lado, a servidão nasce lexicalmente de uma das maiores virtudes: o serviço. Há ensinamentos e parábolas de Jesus Cristo (ao lavar os pés dos discípulos, por exemplo) e até referências modernas de Mahatma Gandhi (“quem não vive para servir, não serve para viver” ou “o melhor modo de encontrar a si mesmo é se perder servindo aos outros”) e Martin Luther King Jr. (“você não precisa de um diploma superior para servir”).
A diferença está no servir como ato generoso de sujeição voluntária - mediado por amor, respeito, gentileza ou altruísmo - e a servidão como sujeição ao outro e estado de servo sob jugo de um senhor (entre as quais, a escravidão).
O que vemos ocorrer com a escalada do vitimismo empresarial, como o do exemplificado lá no alto, é que se recorrer à maior das incoerências, à qual chamo de uma servidão gourmet. É um tal de espírito de martírio do dono de empresa ou do milionário que se diz responsável por sustentar tantas famílias a ponto de dar sua vida (sem sono, sem descanso) pelos funcionários.
A este tipo de posicionamento de autoimagem do cara que trabalha enquanto eles dormem, vem sempre algum resquício do pressuposto contrário: que é justamente do camarada afeito a derrubada de direitos trabalhistas e patrocinador do jugo desigual. Ele se martiriza, diz. Mas não é ele a acordar às quatro para deixar rango pronto pra família, pegar lotação atrasado, percorrer duas horas, sem crédito no celular, para chegar até o primeiro subemprego, para então emendar com outro turno de ralação mal remunerado e ainda ter que cuidar das crianças e vender as férias em troca de sapato, comida.
Quem sustenta quem mesmo? Qual função está mais próxima à de uma opressão servil? A daquele que explora ou a daquele que é explorado?
Nosso milionário “escravizado” pelo que chama de sistema de tributação hostil, dos direitos trabalhistas injustos e a necessidade de “sustentar” várias famílias, é a fachada da servidão gourmet, afeita a um discurso egocêntrico de coitadismo, absolutamente descolado da realidade e que, ao final, não serve a ninguém, senão as explora.
Empresário dessa estirpe - não falo com você, CEO de MEI, empreendedor por necessidade ou mesmo por vocação e oportunidade - pertence a uma classe de novos fariseus. Deseja servir? Comece por um escrutínio da sua própria condição, em face ao abismo social em que vivemos.
Coffice do dia: Café de Andrade (DF)
Há flores por todos os lados nesta pequena cafeteria do Sudoeste, em Brasília, batizada Café de Andrade. Coisa bem incomum para a tendência hipster do segmento dos cafés especiais e, digo, bem-vinda. O minimalismo, o concreto rachado propositalmente exposto, as cadeirinhas de praia aqui dão lugar a cadeiras ovaladas em tons dourado e azul, sofás confortáveis e painéis de rosas compondo uma paleta furta-cor.
O mesmo capricho no desenho decorativo pode não refletir tão bem em alguns preparos, como no croissant pouco aerado ou na densa torta de chocolate e no pornográfico frapê de pistache, mas encontra leveza na tapioca e até no salmão gravlax, que funciona de recheio para sanduíches. A colega Lulu Peters recomenda a banoffee feita com nata. Não costumo pedir, mas pela indicação encaro na próxima visita.
Embora não seja exatamente um café dedicado a uma diversidade de grãos especiais, trabalha com produtores e torrefadores parceiros que preparam um saboroso blend específico para a casa. Neste caso foi o bourbon amarelo de Estrela Carvalho (MG) mencionado no início da newsletter.
E trata-se de um ótimo coffice. Aliás, esta vocação da casa consta da visão da empresa, emoldurada em uma placa estranhamente situada dentro do banheiro (também florido e muito bem cuidado). Tomadas posicionadas estrategicamente, conforto, bom wi-fi, água da casa e, claro, café de qualidade. Eis o aparato necessário para um bom dia de trabalho, estudo, ou apenas encontro e descanso escondidinho na comercial da Galeteria do Sudoeste.