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Esta edição foi escrita acompanhada de um espresso Candy Organge, com grãos da variedade Mundo Novo, por método natural, produzidos por Gil Gésar de Melo em Campos Altos (MG), Cerrado Mineiro.
Aqui falamos do universo do trabalho remoto (e em geral) sempre acompanhado de um cafezinho. Mas falar de trabalho é também falar de descanso, de folga, de férias, de desocupação mesmo, do ócio… da vagabundagem! Opa, aí não. A ordem capitalista, sabemos, valoriza os momentos de fazer nada desde que mobilize a economia. O não fazer nada é muito abrangente para o sistema laboral da vida moderna dar conta.
Domenico de Masi há uns bons anos não tem sido muito lido ou comentado, ao que percebo. Sinceramente, não sei se sua concepção do ócio criativo ficou datada (engolida pelo mercado do “trabalhe enquanto eles dormem”). Eu mesmo não volto a ele há tempos, mas o autor observava muito bem como era importante para o equilíbrio da vida os momentos de vagabundagem.
Há ilustres vagabundos, cujo propósito de vida se completaram pela permissão de se desocupar e deixar de fazer para, por consequência, serem e pensarem. De Diógenes de Sinope ao Chaves, ambos notórios por viverem num barril. O estereótipo da vagabundagem revela mais uma vez aqui como a estética do ócio está ligada com a escassez material capitalista. Ora, Chavito não era um vagabundo, apenas uma criança “em situação de rua”. Nem mesmo Seu Madruga vivia na vagabundagem, era um CEO de MEI sem muito foco empresarial.

A cultura ocidental tem essa necessidade de associar a vagabundagem à loucura. O vagabundo de Hugo Carvana concebe, lindamente, no seu filme-bordão Vai trabalhar, vagabundo (1973), essa máxima do louco-vagabundo. Para ele, loucura é ter que trabalhar.
O vagabundo de Chico Buarque não era diferente. E evocava justamente o pilar da segunda-feira. Na primeira estrofe, a segunda-feira é uma beleza, mera loucura de um desempregado aproveitando a vida, embarcando “com alegria na correnteza”, mas logo ele se depara em uma segunda-feira vazia.
A segunda-feira vazia é momento antes da segunda-feira desgraçada - a tal que leva o vagabundo a morrer, moribundo, no banco da praça. Não chegaremos a tanto aqui. Voltemos apenas à segunda-feira vazia. Ela traduz o espírito do vagabundo, saído do fim de semana já abre o dia letivo desocupado. Esta é a questão. O quão terrível é a desocupação, o ócio e a vagabundagem?
Obviamente, a estrutura de manutenção da vida moderna fatalmente levará o tal vagabundo à desgraça, como escreve Chico - ou, antes, dele o vagabundo ébrio, de Vicente Celestino. Mas há os “vagabundos iluminados”, descritos por Kerouac no livro assim intitulado. Ali, ele estica a experiência beatnik, reconhecendo a profundidade e intensidade como vivem os loucos, encarnados na figura inesquecível e perene de Dean Moriarty.
O pensamento beat influenciou diretamente uma das frases cunhadas pelo grande chapa, jornalista e roteirista Bernardo Scartezini, o Berna, em um dos filmes com o qual contribuiu com pérolas de sabedoria popular no texto filmado. Chama-se Uma dose violenta de qualquer coisa, do diretor Gustavo Galvão.
- O trabalho humilha o homem - diz o personagem de Marat Descartes, resgatando uma estética beatnik da vagabundagem, num paralelo à máxima do mercado de “o trabalho dignifica o homem”.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, diria haver em ambos pressupostos uma ideia importante não dita: o descanso também dignifica o homem. Sendo o vagabundo aquele que entenderia que só a desocupação o dignificaria, enquanto o capitalista aquele somente capaz de viver a desocupação se financeiramente justificável.
A gente (nossa geração) se preocupa demais em parecer ocupado. A poesia da vida nos escapa e, assim, deixamos de reconhecer, entender e fruir o espírito legítimo da vagabundagem que nos daria espaço para sermos pessoas mais “desejosas de tudo”, como em Kerouac.
Chamamos de vagabundos os sambistas (grandes mestres), os artistas mambembes (fomentadores da alegria comunitária). Aliás, o colonialismo nos impôs a cruel narrativa historiográfica do vencedor, cujos povos originários deste Pindorama também levariam esta pecha de à toa, por seu tão sábio modo de viver na ecosofia.
De lá para cá nos acostumamos tanto com a vida de exploração (e autoexploração) materialista, que até os bolsões de ociosidade que conseguimos, como nos feriados, servem mais ao impulso do consumo, do que à necessidade de cura - sacada que Kerouac tem ao falar dos “mendigos do Dharma”, ou os já citados vagabundos iluminados, que buscam as realizações espirituais.
Sem pretender um exercício de exegese, no livro de Eclesiastes, na Bíblia Sagrada, o autor apócrifo questiona acerca do labor da vida:
- “Que grande ilusão! Que grande inutilidade! Nada faz sentido!”, diz o sábio.
- Que vantagem tem o ser humano em todo o seu trabalho, em que tanto se dedica debaixo do sol?
Claro que, quando o Carnaval passar (e até o próximo feriado), voltaremos a tratar da correria da vida, cumprimentar o colega no silêncio constrangedor do elevador citando a dureza que é voltar ao trabalho para receber de volta um “nem me fale”.
Deixe a segunda-feira vazia de quando em quando, esta oportunidade do descanso, do ócio ou da vagabundagem de qualidade, sobretudo desapegada da necessidade do consumo.
Comida de Pensar 2023
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Coffice da semana: Weknd Coffee Bar (DF)
Então é Carnaval. Daí um coffice bem neste estilo. O Weknd Coffee Bar traz uma proposta entre ambas as categorias do seu subtítulo. Funciona tanto como uma cafeteria, diurna, abre lá pro meio da tarde, como também como um bar meio baladinha.
Rola de trabalhar por lá? A resposta é: depende. Como em todo estabelecimento comercial com esta vocação, como costumo dizer, temos de observar a proposta do local. Mas há um cantinho na parte interna bem agradável para se trabalhar e tomar um café. Ou seja, estimula-se a prática do coffice.
O Weknd é bacana caso você goste de um ambiente mais jovem-moderninho. Tem brunch todos os dias e um cardápio que sai dos típicos lanches de cafeteria para petiscos e até refeições à medida em que o sol cai.
Fique de olho na programação para não chegar no meio de uma balada ou de um show ao vivo. Exceto caso seja a hora de encerrar o expediente.
Segunda-feira vazia
Bom dia, Guilherme! Excelente reflexão. Tive a oportunidade de assistir pessoalmente uma palestra de Domenico de Masi aqui no Brasil em 2019, na qual ele atualiza seu conceito do ócio criativo considerando as transformações que vivemos no mundo do trabalho. Penso que o conceito se tornou mais crucial ainda, com o avanço da automatização dos ofícios e sua progressiva ocupação por inteligências artificiais. E pensar os cafés, o ócio criativo, a "vagabundagem" nesse contexto é oportuníssimo!