Esta edição foi escrita acompanhada de uma moka a partir de grãos da variedade arara, cultivados por meio de técnicas agroecológicas por Maria Vitória e Daniel, em Rio Verde (GO), no Sudoeste Goiano, com torra da Ahá Cafés.
O ser humano foi a primeira máquina criada. Máquina de criar máquinas. A única máquina, até hoje, movida a cafeína.
Na fase infantil, a consome via achocolatado, refrigerantes e chá-mate. Na adolescência, há os que já atravessam a puberdade à base do café. Mas entram para a faculdade e amanhecem na sala de aula com uma lata de energético — motivos vão desde balada a insônia; do vício em game e série à necessidade de varar noites para se manter pari passu com os estudos. Começa a trabalhar e o café deixa de ser bebida para se tornar ignição de produtividade.
A cafeína se tornou um recurso próprio do maquinário humano. Um combustível natural, mais ou menos fóssil (pois processado pelo fogo), e que espero não se torne escasso. Um combustível dessa corporalidade ciborgue, em que a matéria orgânica mantém dinâmica uma mente conectada a dispositivos tecnológicos, dos quais é dependente também.
E quando falo nesta dependência dos suportes, da necessidade de relacionarmo-nos com eles intima e complexamente, refiro-me inclusive à própria evolução deste sujeito. Ele não mais cresce em inteligência, conhecimento, sabedoria e experiência. Ele precisa de atualizar-se, uma palavrinha que o mercado de trabalho impôs como fundamental para integrar-se à estrutura laboral pós-moderna.
Atualização, que nossos PCs, tablets, smartphones e até dos nossos aplicativos instalados, com o risco de, se não o fizermos, tudo pare de funcionar. Pois para nós, seres humanos, é requerida (ainda) a funcionalidade. Como se estivéssemos ainda presos nas engrenagens dos tempos modernos, à ilustração de Carlitos.
No contexto da Revolução Industrial, o maquinário desenvolvido pelo ser humano o substituía. E a cadência do século 20 normalizou essa robotização das cidades (a cidade-ciborgue de André Lemos), tornando-a uma realidade necessária e desejável. Quem quer pegar fila de banco, de lanchonete ou do cinema? Abra um app. Resolvido!
A integração tecnológica com a corporalidade humana muda nosso jeito de andar, nosso visual, nossa cervical, que com tanto esforço evolutivo chegamos à postura ereta, para agora andarmos com a fronte curvada pelo efeito hipnótico das telas. Ou andamos surdos, pelos fones fincados em nossos ouvidos mais do que piercings e brincos.
Uma das primeiras elocubrações acerca desta ciborguezação ou robotização humana nasce na literatura ainda com Le Mettrie no século 18, em sua obra “O Homem-Máquina” (1748), considerando uma dualidade que implica mais na ausência de alma do ser humano, em uma retórica em resposta à clássica dualidade alma-corpo. Para Le Mettrie, o corpo era máquina, um conjunto de engrenagens. Neste sentido, sempre fomos robôs feitos de matéria orgânica.
A preocupação contemporânea, na verdade, é com os robôs “artificiais”. O que também abre para um debate sobre a corporalidade (cirurgias plásticas, inserção de placas, próteses, tudo isso não artificializa? Mas também não há um efeito similar uma mera tatuagem, maquiagem ou corte de cabelo?).
Voltando da viagem. A pergunta é: no futuro (e no presente), robôs vão tirar nossos empregos?
Ora, já o fazem desde a criação do autômato. Mas não seria necessário nem um robô com feições humanas. Basta um elevador, este robô-caixa a desafiar a gravidade (exceto por alguns casos), para exemplificar. Qual é o mercado de trabalho de um ascensorista em 2023? Mesmo em 1993?
Topei com a ótima sacada do humorista finlandês Ismo, que ironiza como a internet já nos divide entre humanos e robôs com aquela perguntinha de captcha. Está em inglês o vídeo.
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Pois bem. O mundo é dos robôs, inclusive dos orgânicos. Mas daqueles atualizados. A nossa incessável busca por se atualizar para o mercado de trabalho cria uma “tirania do upgrade”*. Como num antigo computador, no qual não se consegue instalar o mais recente sistema operacional, assim é o ser humano sob este sistema do upgrade: fadado ao ocaso.
Você é um robô? Depende. A pergunta do captcha é capiciosa (entrando na brincadeira do humorista, claro). Se formos ser honestos. Dado à nossa grande mutação do modus vivendi é impossível dissociar o sujeito orgânico do homem-máquina. Somos pós-orgânicos, cujos corpos demandam ainda aprimoramento de funcionalidades tecnológicas integradas à vida humana.
*Por força da Academia (não a do pesaroso compromisso antes das 8h, mas a do saboroso desfrute vocacional depois das 8h), me reencontro com os escritos de Paula Sibilia, uma das grandes visionárias e intérpretes do nosso tempo, que cunhou o termo homem pós-orgânico e o que utilizei acima: “tirania do upgrade”.
Acho que merece aqui um brevíssimo introito sobre Sibilia, para vocês a conhecerem e lerem seus trabalhos. Pesquisadora argentina, radicada há muito tempo no Rio, ela é uma antropóloga das corporalidades e das subjetividades. Vale muito lê-la. Desde seu primeiro livro (com o qual tive contato, ao menos), no final da década de 2000, “O Show do Eu: A intimidade como Espetáculo”, no qual ela aponta sérias profecias sobre a era que vivemos, partindo da TV em tempos de internet.
Sua obra seguinte, Redes ou Paredes (2012), aliás, oferece uma certa premonição das relações escolares na pós-pandemia, já compreendendo a fundo o fenômeno que começava a abater os estudantes no novo milênio: a dispersão (não somente dos alunos, mas da geração, do zeitgeist). Por fim, deixo a indicação de “O Homem Pós-Orgânico” (2011), de onde extraí boa parte da inspiração para nossa reflexão de hoje.
Coffice da semana: Coffee Lab (SP)
Ainda não divulgamos a lista das cafeterias de São Paulo contempladas com o Selo Coffice - Atestado de Qualidade de Cafeterias. Já fizemos uma primeira leva de Brasília, Goiânia e Belo Horizonte (que teremos mais em novembro), mas estamos preparando o lançamento do Selo Coffice para a praça de São Paulo. E, enquanto não vem, vamos de spoiler: Coffee Lab.
Podemos reconhecer a cafeteria de Isabella Raposeiras como uma das maiores referências e inspirações para a cultura do café especial na ponta do consumo, mas com o compromisso lá com a plantação. Visitei em dois momentos o Coffee Lab nesses seus (podemos dizer) 20 anos de atividades completos no próximo ano, se partirmos do projeto piloto da casa, desde 2011 no incônico ponto da Fradique, na Vila Madalena.
Coffe Lab representa a essência do que chamamos aqui de Coffice. Com a compreensão lúcida e ampla da função social da cafeteria como local de agregação, encontro, passagem e, claro, trabalho remoto. Tudo isso precisa, naturalmente, estar acompanhado de uma boa xícara de café — ou de chá, ou de outras bebidas, afinal o café transcende o líquido amaro.
Com serviço de barismo de excelência, hospitalidade das mais azeitadas, a casa é uma conjugação de fatores que culmina na experiência. Desde a experiência químico-sensorial do café (cursos, experimentos, testes etc.) à experiência estética do cotidiano. De propiciar o uso da cidade.
Eis uma cafeteria que qualquer amante de café, no mundo arrisco dizer, deveria ao menos planejar conhecer.