Esta edição foi escrita acompanhada do café Flor de Caramelo, um varietal com mundo novo e catuaí vermelho, processado naturalmente por Alessandro Hervaz em São Gonçalo do Sapucaí, na Serra da Mantiqueira (MG), torrado por Ernesto Cafés Especiais
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei”
Mateus 11:28
Essas palavras do evangelista Mateus inspiraram, talvez, o primeiro grande case de marketing gastronômico da história. O serviço de alimentação fora do lar, neste formato com o qual estamos habituados do restaurante moderno, inaugurou um segmento do trabalho que passamos a usar no métier como hospitalidade para se referir também à venda de comida feita, pronta, nas tavernas europeias e tal. Claro que, ao contrário da narrativa dominante, não foi a França que inventou este modelo, mas os modos comerciais e os organogramas da operação franceses moldaram a nossa forma de consumir e trabalhar neste setor.
Um nome do latim foi importante para revelar esta categoria de trabalho: restauração. Conforme prometido na newsletter da segunda passada, depois de um bom cochilo de café (coffee nap) acordamos para compreender a necessidade de restauração para uma relação saudável com o trabalho.
Pois, no século 18, consolidou-se na França pré-revolução um hábito copiado, ao menos, por toda a Península Ibérica: em meio às atividades do dia a dia, sobretudo em viagens, o trabalhador encostava o cavalo em casas de pouso (também chamadas “casas de saúde”) para esticar as pernas, descansar e recobrar as energias para continuar a trajetória.
Nessas casas servia-se um tipo de sopa, chamada de bouillon restaurant ou caldo restaurador, conforme teorizado nos registros históricos (Flandrin e Montanari com “História da Alimentação”, Ariovaldo Franco com “De Caçador a Gourmet” e, mais recentemente, Rebecca Spang com “A Invenção do Restaurante”).
Somente em 1835 o termo restaurant, isolado, entraria em um dicionário francófono com a descrição do que conhecemos hoje como o restaurante moderno. O princípio gastronômico da alimentação antes da instituição restaurante evidenciava o poder medicinal do alimento, em sua qualidade de se “restaurar as forças debilitadas” (PITTE in. FLANDRIN e MONTANARI, 2015, p. 755) ou devido aos seus “poderes restaurativos” (SPANG, 2003, p. 28).
Esse argumento carrega lastro enorme desde a pré-história, com importantes considerações desde o pensamento grego antigo. Mas solidifica-se na França de 1765, impulsionado pela famosa estratégia comercial do padeiro Champ d'Oiseaux (ou Mathurin Roze de Chantoiseau), ao reproduzir na fachada de sua boutique uma paródia do verso bíblico em latim: “Venite ad me omnes qui stomacho laboratis et ego vos restaurabo” (vinde a mim todos vós que sofreis de dores de estômago e eu vos restaurarei).
“A restauração alimentar é compreendida por seu uso, sobretudo, metafórico. Desapega-se do grego, pois os instrumentos desse restauro competem ao processamento fisiológico da matéria orgânica de cada ser “restaurado”. Na etimologia latim, o re encontra uma companhia ideal nos sufixos ponere (colocar) e solvere (solver), constituindo a base para as grandes questões humanas: encontrar resposta (reponere) e resolução (resolvit)” (LOBÃO, 2022, p. 130) - veja eu me autorreferenciando, que beleza!
Na restauração, o movimento é intermediário a elas, pois a restauração consiste num exercício interminável de se colocar (neste caso a comida no corpo sem forças) e solver (solucionar a fome ou a ausência de energia, satisfazer-se). Tão logo este ciclo termina, o corpo volta a necessitar de novo restauro.
Para este contexto pós-moderno criamos um modelo de restauração para a dinâmica frenética do trabalho pós-Revolução Industrial. Tempos dilatados de produção, horas em excesso. Brigamos por direitos e os recebemos. Mais ou menos respeitados, os tempos de restauração foram incutidos na rotina. Por isso associamos a hora do recreio com o lanche na escola; o horário de almoço no mundo corporativo; e os momentos de desopilação do trabalho com encontros em torno da mesa.
A comida é restauradora das energias pelo estômago e também pela cabeça. O momento do lanche, tão aguardado, significa não se preocupar com o trabalho a fazer e compreende certo deslocamento, se não físico e espacial, ao menos mental ou postural. Relaxamos, pausamos, comemos e nos restauramos.
Coffice da semana: Vila Zete Café (DF)
O texto do coffice desta semana é de uma assinante — o espaço, aliás, está sempre aberto para quem quiser sugerir um coffice pra gente de qualquer parte do mundo. Grande amiga e colega de letras gastronômicas, a autora Mariana Vieira traz um coffice novo, inagurado recentemente na Asa Norte, em Brasília. Antes, aproveitem para assinar a newsletter dela, Conchas, uma leitura dominical saborosíssima (o texto do Dia das Mães tá ótimo, aliás).
Vila Zete, aberta há pouco mais de dois meses no espaço onde funcionava a torrefação do Aha! Cafés, oferece um bom espresso. Peça o da Vila, com o “grão do barista”, mais interessante que a versão simples.
V60, Aeropress e Prensa Francesa completam as opções de extração. Seis opções de cappuccino agradam puristas e fãs daquela cafeteria da sereia. Pros dias quentes, cold brew e espresso tônica. E pro amigo que não quer (ou não pode com cafeína) eles oferecem uma carta de chás com rooibos e infusões.
Água da casa e wi-fi boas, mas mesas sem tomada (se pedir, eles liberam uma extensão). Cadeiras metálicas não são as melhores para longas jornadas laborais (cuidado com essa lombar!) mas ideal para reuniões, ler um livro ou dar um tempo.
Amei contribuir com uma edição justamente sobre restauração, o propósito dos restaurantes!