Estaedição foi escrita acompanhada de um espresso duplo Griffe, com grãos catuaí vermelho, produzidos por Ademir Lacerda no Alto Caparaó (ES)
O termo performance sofreu um deslize semântico relevante nesta última década, sobretudo quando aplicado ao universo do trabalho. Explico. Há performance e performance.
A primeira diz respeito ao desempenho mecânico, atributo muito importante no segmento automobilístico, por exemplo. Esta foi uma adjetivação capturada pelo glossário dos recursos humanos na era informacional para fins de mensuração de desempenho de funcionários.
E performance, por outro lado, pertence ao mundo das artes. Esse estrangeirismo domesticado virou até verbo em favor da produção cultural: performar. Uma performance corresponde a uma apresentação musical ao vivo, à atuação de atores ou dançarinos em cena, em set, no circo, no improviso mambembe do teatro de rua, nos malabares do centro da cidade, na mímica… performance, nas artes cênicas, é uma subcategoria muito explorada, aliás, pelo teatro de invenção e pela dança contemporânea. Artes do movimento e da expressão.
Eis o novo domínio da performance: a união das duas possibilidades. O artista performa para o público e o operário precisa ter uma alta performance. Mas este novo tempo exige ambas as coisas do trabalhador: performar na performance.
A este fenômeno o filósofo Byung-Chul Han (já muito citado nos nossos coffices por aqui) atribuiu o conceito “sociedade de desempenho”, em que o indivíduo está sempre sujeito à lógica da produtividade.
O que acontece nesses tempos é que a sociedade do desempenho agora se tornou uma sociedade da performance. Nela não basta ser eficiente, é preciso parecer. Aliás, a aparência de produtividade também já ficou para trás. É preciso transmitir o desempenho por meio da… performance. A do segundo tipo.
Celulares em riste! E mais tripés, ringlights, microfones de boa captação, apps de edição e legendagem, ufa! E ainda precisa engajar.
Tudo isso agora se torna parte fundamental do trabalho. Mostrar-se trabalhando, midiaticamente, é tão ou mais importante que a performance/desempenho da tarefa demandada.
É o que tem sido massivamente chamado de tiktokização das profissões, na qual se prevê uma necessidade de produção de um conteúdo extra-tarefa para valorizar o diferenciar a abordagem da tal tarefa de modo que ganhe relevância midiática via redes sociais, independentemente de se a tarefa foi bem cumprida.
O meio é extensão do ser humano, já dizia McLuhan. Ou seja, estamos cada vez mais cumprindo esta profecia ao pé letra. O dentista com uma mão segura a broca e com outra o celular; aos advogados não basta apresentar a defesa no tribunal, tem que fazer textão no Twitter; jornalistas não podem só reportar os fatos, mas explicá-los em tópicos nas redes sociais; e professores têm que transferir o cuspe-e-giz para o InShot. Para tudo esperamos sentados por uma performance. Só existe se alguém viu.
Aliás, a tiktokização do mundo do trabalho inclui-se no fenômeno da plataformização da vida. Soluções vêm pelo digital e se materializam no mundo real de modo evanescente: falo das empresas tecnológicas de serviços de comida sem cozinha, de condução sem carro, de hospedagem sem imóvel.
Na sociedade da performance, o trabalho se desmaterializa em fução do algoritmo interessado mais na narrativa do que na planilha pronta dentro do prazo. Afinal, não basta trabalhar, tem que construir audiência.
Coffice da semana: Constantina (DF)
As cafeterias têm prosperado em Brasília. Aparentemente, ao menos, este segmento tem expandido vertiginosamente na capital federal. Fenômeno recente, portanto, difícil de ser afirmado e mensurado sem uma pesquisa por trás. Suspeito que está entre os três mercados mais aquecidos do setor de alimentação e bebida do país.
Aberto há pouco na 408 Sul, o Constantina Café e Quitutes integra uma das ruas dos restaurantes da Asa Sul (sendo a original a da 404/405 Sul). Este endereço, especificamente, abrigou um dos mais badalados bistrôs da cidade (no tempo em que não era um formato lá dos mais corriqueiros) da virada do milênio, o C’est Si Bon - a sociedade dividiu e a marca foi para a Asa Norte, deixando o ponto com uma nova alcunha, C’est la Vie, que fechou na pandemia, se não me engano.
A localização é bem favorável e o Constantina aproveitou bem a estrutura para um baita coffice. Com amplo espaço, tomadas convidativas a quem chega com computador para plugar, conta com wi-fi estável, água da casa e, claro, café.
É preciso melhorar um pouco o serviço de barismo da casa. Parece que ainda não está muito preparado para receber a clientela mais connoisseur de cafés especiais. Sei que somos uma galera chata pacas! Concordo. Mas o barista precisa saber na ponta da língua quais grãos, lotes, métodos de café estão disponíveis. E não vir só com as notas sensoriais, sem muita explicação do que significam inclusive.
Nas comidinhas, pão de queijo ok e um belo pão na chapa e uma lista extensa, porque eles abrem diariamente das 8 às 8. Importante ter lugares assim para o nômade digital - ou só pra quem quer dar uma encostada lá com amigos para jogar papo fora ou ler um livro.
Não consigo deixar de sentir uma certa angústia sempre que entro em contato com esse tema — mesmo que, nas conversas em questão, não estejam postas maiores reflexões morais ou da subjetividade.
Enquanto nutricionista, amaldiçoado a parecer eficiente, sinto um certo incômodo ao perceber, ainda, que tal tarefa sisífica tem dado cada vez mais nitidez a uma única e bem estabelecida forma de performar: aquela que mimetiza o trabalho de coachs e blogueiros cujo discurso e prática, de início, pouco tinha a ver com o que dizia e fazia um profissional da saúde.
Longe de abraçar uma posição ludista e tampouco conservadora, aprecio esse espaço de fascínio, crítica e de descobrimento de formas para elaborar mensagens atraentes num tempo de alta na valorização dos meios digitais.
Ótimo texto!
Abraços,