Esta coluna foi escrita acompanhada de um catuaí vermelho do Cerrado goiano no método coado em pano escaldado.
Trabalhar em cafeterias e empreendimentos similares deste ramo da hospitalidade permite-nos observar de perto como o ofício no setor de serviços de alimentação é peculiarmente volátil. Digo também por experiência de atuação no ramo (direta e indiretamente). Naturalmente, você pode relacionar esse mesmo movimento a outros tantos segmentos, mas quero enfatizar este lugar cujo compromisso é alimentar - ou restaurar em referência à origem semântica latina do “restaurante”.
O mercado da restauração, como prefiro chamar, é sintomático para reconhecermos a tal volatilidade - tanto na dinâmica trabalhista (com suas horas dilatadas, sindicatos moribundos) como na concepção do negócio, excessivamente afeito ao espetáculo estético. Podemos remeter aos tempos de Luís XIV e os suntuosos banquetes de Vatel, mas também encontrar muito antes essa perspectiva espetacular nos festejos e rituais em praticamente todas as culturas. O sentido estético está ali. Talvez, nunca tão vilipendiado como os alquimistas ignóbeis nos apresentam pelo olho mágico digital do TikTok.
São esses alquimistas que refletem a toada desta “sociedade do cansaço”, teorizada por Byung Chul-Han. Ele aponta, de modo cirúrgico, que “cada época tem suas enfermidades fundamentais”. A nossa é a desse cansaço, refletido nas mazelas humanitárias, mas, principalmente, na dimensão mental do ser humano. O cansaço também revela outro pacto estético para o âmbito da restauração nesta sociedade.
Eu devia estar contente…
O ouro de tolo de nossa época é ainda mais efêmero, insosso, débil e fútil. E deu à luz os negócios gastronômicos em que a comida sai de cena e dá lugar a qualquer outra coisa que possa transformá-la em destino turístico ou objeto de desejo. O açougueiro e chef turco Nusret Gökçe, mais conhecido como Salt Bae, e sua rede milionária de churrascarias Nusr-Et são o perfeito estereótipo deste movimento que não fora fundado por ele.
A lista dos ignóbeis alquimistas é mais extensa do que a dos restaurantes Michelin - e muitos desses representam igualmente a falência da restauração ao subjugar o sentido estético amplo da experiência gastronômica ao caquético exercício marqueteiro-pornográfico do uso da comida como adereço de cena instagramável.
Veja o espetáculo proposto de Nusr-Et: mimar a alta classe, políticos, xeques, playboys e toda sorte de celebridades - dentre elas, claro, os jogadores de futebol. Provavelmente, todos os grandes craques e ex-craques entraram no picadeiro do gado de ouro - até Messi, o discreto, entrou na onda, para afundarmos de vez o vira-latismo ao qual a internet se inclinou esses dias para atribuir a derrota do Brasil na Copa à fanfarronice do escrete afeito a dancinhas, cabelos pintados e à esbórnia de tomahawks, prime ribs e bifes de wagyu incrustados de folha de ouro comestível.
Do alto de seu império milionário de açougue-bijouteria, Salt Bae não pode ver uma pepita reluzente que já vai se enturmando. Di Maria ontem quase perdeu a taça recém-conquistada para a boca gulosa do açougueiro, que foi lá no campo tirar uma lasquinha da Copa esculpida por Silvio Gazzaniga.
Em tempo: Salt Bae carrega o apelido procedido pela fama de fatiar uma enorme peça de carne com a picanheira (como chamamos no Brasil). Feitos os cortes, ele salgá-la hermeticamente com a ponta dos dedos e pulso curvado à altura do queixo. O sal escorre como chuva pelo antebraço do enigmático turco de luvas pretas, óculos escuros à John Lennon e camiseta branca colada e espalha-se irregularmente pelos nacos de carne mal-passada.
A própria churrascaria do SaltBae revela o sistema de privilégios e hierarquização não só do trabalho como do salão em que o cliente é atendido. Para receber a visita chef-celebridade (ou chef das celebridades) à mesa, por exemplo, é preciso pedir determinados cortes, de altíssimo custo, claro. Em Brasília, tínhamos o Piantella com sua famosa mesa de Ulysses, discreta, no segundo andar, à meia-luz. A ordem agora está invertida. Discrição vai no contrafluxo dos algoritmos das redes sociais.
Queremos cortes. De carne? Não, de vídeo. A carne de ouro é um corte midiático e não gastronômico. Ela sacia a quem vê e não a quem come. Ora, que gosto tem uma folha de ouro? Já provei (não é uma coisa nova na gastronomia, e os italianos mais chiques outrora serviam sobre o risoto milanês). Insosso e inodoro. Desmancha e se desfaz com a maior facilidade, ou seja, nem como textura serve - bem que deve ter gente que gostaria de sentir o tilintar do metal à primeira mordida.
Eis a sociedade da fanfarronice, que quer sentar no trono da churrascaria com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a carne, pendurada na ponta da faca e banhada em ouro chegar à boca.
Coffice do dia: Belini Pani & Gastronomia (DF)
Eis uma cafeteria histórica de Brasília. A Belini, hoje atendendo com o sobrenome Pani & Gastronomia, é a pioneira por essas bandas em ter torrefação própria. Começou ainda nos anos 1990, quando nem falávamos em café especial. Lembro-me de, na cidade, ser apenas ela, capitaneada pelo Gilberto Manso, e o restaurante Universal Diner, da chef Mara Alcamim, a ostentarem uma mega máquina de torrefação no meio do salão.
A Belini foi crescendo ali na quina da 113 Sul, voltada para a 300. De padaria, agregou confeitaria, virou empório, hoje ostenta restaurante e até loja e salão para eventos no andar superior. Ficou apertado o espaço para os cafés de tal forma que o grupo abriu, do outro lado da rua, na 114 Sul, uma cafeteria com o elixir dos cafezais como protagonista. Ganhou um nome cheio de pompa: Belini Café - The Coffee Experience. Mas, não falarei deste. Minha última vista não foi legal nem pelo café, nem pelas acomodações e, claro, porque não tinha wi-fi. Não vingou um coffice.
Contudo, a Belini clássica é um belo destino para quem pratica o coffice. Amplo, com muitas mesas e tomadas, cardápio para todas as horas do dia - dá para encarar até nos horários de pico. Em tempos chuvosos como agora, evite os sofás encostados no jardim de inverno, pois um ataque de muriçocas é inevitável em qualquer espaço mais arborizado.
Os métodos na Belini são mais limitados do que o da cafeteria-filha do outro lado da rua. Mas entrega muito bem os espressos e v60.