O sedentário digital
Como a gourmetização do trabalho online criou a ilusão do "emprego" perfeito na figura do nômade
Leia nesta edição #4:
Artigo: O sedentário digital
Notícias: Rio Coffee Nation + Protagonismo feminino
Descubra: nova sessão, dedicada a apresentar sempre uma variedade, um método ou um apetrecho do universo do café.
Coffice do dia: Acervo Café (Guará, Distrito Federal)
Esta edição foi escrita acompanhada de um espresso duplo Vargem Grande, Caturra, lavado, da região do Alto Jequitibá (MG).
Artigo: O sedentário digital
Ô da poltrona!
Este bordão de Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, vulgo Renato Aragão, que aparecia na sua TV de tubo, resume o espírito de impassividade tecnológica que marcou a última geração do século 20. Acomodar-se no abraço da poltrona ou nas almofadas de um sofá era concebido como descanso, preguiça, ócio, doença, paralisia…
O sofá, para a modernidade, se tornou esse inimigo da produtividade segundo os coaches neoliberais - a fazer você se penitenciar por não trabalhar enquanto eles dormem. De lugar de descanso, o sofá exige também que se atue na perspectiva da nova cultura do trabalho remoto desenhada diante de nós: a do nomadismo digital.
Vale uma explicação do termo. Nômades digitais correspondem a trabalhadores autônomos (empreendedores e freelancers) cujas atividades independem do atendimento presencial. Dentro desta breve descrição, o nômade digital poderia muito bem ser um sedentário digital. Ou seja, não importa se trabalhou durante uma volta ao mundo em 80 dias ou se passou o mesmo tempo locomovendo-se entre três cômodos dentro de casa.
No entanto, a filosofia do nomadismo digital considera um atributo chamado de liberdade geográfica. Ou seja, a possibilidade de trabalhar de qualquer lugar do mundo. Isso, a rigor, cabe muito bem ao sedentário digital. Afinal, ficar em casa ou no coffice da rua debaixo pode representar muito bem o exercício de tal liberdade, não?
Entretanto, o nomadismo digital cristalizou um novo imaginário sobre as relações do escritório remoto, de que você estaria livre para pegar o passaporte e sair carimbando por aí. Não é um trabalho, mas um lifestyle. Esse estilo de vida não está tão distante assim de um “comodismo” geográfico.
No digital, o fenômeno do nomadismo é o mesmo a dar à luz a um sedentário. Ambos se valem do sofá e da conexão digital. Mas o nômade é uma versão gourmet, banalizada. Afinal, você não finaliza aquele powerpoint de cima de uma prancha de wakeboard nas Maldivas ou sobre o lombo da Esfinge de Gizé. O sinal do Airbnb é melhor ou, fatalmente, você irá parar justamente em uma cafeteria.
O nomadismo digital cria uma ilusão dupla. A primeira é da vida intagramável da tal liberdade geográfica, que embaça as fronteiras entre lazer e trabalho, ócio e diversão. A segunda é de que o trabalho nômade seria o relativo ao do enriquecimento, pois envia a mensagem de uma vida exitosa, sob o pretexto da mobilidade.
Troco o meu coffice pelo sofá de casa para começar esta newsletter. Computador no colo, revezo com o apoio no braço do móvel e com a mesinha adiante… mas não dá. Essa ergonomia não permite avançar muito no ofício da escrita. Alguns minutos, ok. Para um segundo parágrafo preciso de mesa, de um mínimo office (home ou coffee).
Uso o sofá para alguns trabalhos, leituras fugazes e atividades protocolares: responder e-mails pelo celular ou fazer pesquisas pouco estimulantes. No canto do olho, uma aba aberta em vídeos satisfatórios do YouTube, daquele povo paciente que transforma uma corrente enferrujada numa katana linda e afiadíssima.
Ou seja, há trabalho - mínimo que seja - feito do sofá. E haverá cada vez mais. Há uma evolução da espécie emergindo de certa juventude sem coluna, que desconhece lombar, cervical e tendinite. Se isso vai durar, não sei.
O meio de se comunicar é uma extensão do ser humano, teorizava McLuhan (aulas particulares de Teorias da Comunicação chamar inbox, hehe). Este meio/suporte está acoplado quase organicamente às extremidades: fones sem fio mais permanentes do que brincos esquecidos nas cavidades auriculares; celulares não mais descansam nos bolsos, pois presos à palma da mão.
O cara lá que Didi chamava atenção, “da poltrona”, tinha como extensão o controle remoto a girar por cinco ou seis estações capturadas pela antena UHF. Num piscar de olhos, ele se conectava via cabo, via satélite e ultrapassava as centenas de estações. Até os botões passarem a acessar o infinito da internet. Do sofá para o mundo, pela extensão dos dedos.
Dissolvem-se as barreiras temporais. O sedentarismo se torna produtivo a qualquer momento do dia, de qualquer cômodo ou móvel da casa, mesmo para quem já cumpriu o 8h às 18h na firma.
Dissolvem-se as barreiras espaciais. O nomadismo transforma a viagem para um cenário paradisíaco em trabalho e não mais descanso.
Não se trata de compartimentar a vida, mas de repensar se estamos nos explorando demais a ponto de não encontrar o ponto de equilíbrio nesta rotina que muda tão abruptamente como um comando Alt + Tab no teclado do PC.
Agora vamos às news:
Rio Coffee Nation
Eventos cafeeiros um atrás do outro. Vamos nos esforçar para sempre espremer algum aqui nesta newsletter. Nos dias 15 e 16 de outubro o Rio Coffee Nation chega à terceira edição com ênfase em cafés orgânicos. Acontece na Casa França Brasil, no Rio (claro), e terá uma programação extensa com degustações, workshops e, claro, campeonatos, que se tornaram um lance no ramo dos cafés especiais, incluindo o xodozinho do Latte Art (aquela finalização artística com leite vaporizado no espresso). Evento para expert, de mercado mesmo, mas também com muita coisa voltada para o público leigo interessado.
Protagonismo feminino
Quantas chefs mulheres você conhece? O problema estrutural do machismo se estende por todo o mercado de trabalho, como sabemos e, infelizmente, ainda é preciso se discutir o lugar da mulher. Promovê-la corretamente para gerar equidade é o mínimo. Está aí a Villa Stella para servir de exemplo. Em Brasília a primeira edição terminou ontem, no CCBB, e agora segue para BH, no próximo fim de semana, para seu terceiro ano não consecutivo. Na sequência virão São Paulo (17 e 18), Porto Alegre (24 e 25) e Rio de Janeiro (outubro).
A proposta é simples: uma feira gastronômica, daquelas de pratinho de papel e talheres biodegradáveis, mas só com empreendimentos liderados por mulheres. DJs e artistas mulheres para fazer o som e convidadas mulheres para os bate-papos. Precisamos conhecê-las e reconhecê-las. Afinal, na alimentação, a questão do lugar da mulher é uma das mais contraditórias. Ela foi sempre relegada a cuidar da cozinha. Daí com a ascensão de uma cozinha profissional, quem vai ganhar dinheiro, respeito e se desenvolver perante a sociedade serão os homens.
Descubra: Caturra
Na seção desta semana do “Descubra” vamos aprender um pouco sobre esta variedade da espécie Arábica (coffea arabica), a cultivar Caturra. Ela ocorre principalmente no Brasil e na Colômbia, subindo até a Guatemala. Trata-se de um híbrido natural da variedade Bourbon (especialmente do vermelho). Bourbon, para quem não sabe, é um dos principais subtipos de Arábica.
O Caturra foi descoberto na região limítrofe entre Minas Gerais e Espírito Santo e considerado uma das mais recentes variedades a serem introduzidas na produção comercial, no final dos anos 1930.
De frutos em maioria avermelhados, o Caturra vem de plantas mais baixas, de cachos frondosos e, portanto, de fácil colheita. Carrega entre suas características gerais - tudo vai depender de safra, manejo, torra e extração, claro - uma acidez leve, brilhante, dulçor acentuado e muita complexidade.
Coffice da semana
Ô da poltrona! Nada como um sofazinho na cafeteria. Afinal, coffice também é um lugar para pegar o wi-fi e se permitir o lazer, a descontração, o repouso e a leitura. Esses cafés moderninhos, bem hipsters, normalmente são destinos ótimos para quem busca esse estilo de conforto. O Acervo Café, no Guará (DF), espalhou sofá e poltrona de vários tipos em sua loja original, na QE 40, como se convidasse para uma sala de estar dos anos 1970, deteriorada com o tempo e remendada no improviso. Literalmente, boa parte do mobiliário e dos apetrechos foram garimpados de ferro-velhos e lojas de antiguidades.
Fiação aparente, parede esburacada, faltando acabamento, bibelôs vintage associados a mesinhas e cadeiras estilizadas. Talvez seja muito over. Mas a impressão das acomodações, aos poucos, se alinha ao serviço e ao cardápio. Inicialmente, não servia espresso, só métodos filtrados. O aspecto retrô chega à mesa com o café e as tortas e bolinhos, em contraste com a modernidade das cartas de drinques e dos vinhos naturais.
O Acervo expandiu com a inauguração da Livraria da Travessa, ocupando parte do que era a Cultura no Shopping CasaPark (numa região considerada Guará). Instalou-se no mezanino. Correntes escorrem do teto ao chão e dão a volta na loja como paredes vazadas, assegurando que ninguém caia em cima de uma biografia, nem mande alguém para a história.
Arquitetura mais clean e “coerente” do que a arquitetura da loja original, porém com acabamento de concreto propositalmente inacabado. O wi-fi é ótimo, a água da casa permite autosserviço, o que é perfeito. O café segue o forte da casa. Mais caro do que a média. Boa proporção de mesas para estudo e reuniões, com alguns pontos de tomada. Mas é um local superadequado para tirar um tempo de leitura, obviamente.
Aproveito para resgatar um texto que publiquei lá no Metrópoles, sobre o início da operação do Acervo, especificamente dedicada a falar de suas instalações:
“No imaginário da metrópole, um café também significa ambiente: locação para estudos e trabalho, aconchego, informalidade, momentos de conversa fiada, horas a fio diante de um livro ou arrastando o dedo no celular. Seria um bar avesso à boemia, mas igualmente comprometido com o acalentar da alma”.