O caso Noma
O que o fechamento anunciado do "melhor" restaurante do mundo nos alerta sobre as dinâmicas de trabalho na gastronomia?
Insustentável. Essa foi a conclusão a que chegaram o chef dinamarquês René Redzepi e sua equipe diante do planejamento do futuro do Noma, restaurante situado em Copenhague eleito seguidas vezes melhor do mundo, detentor de três estrelas Michelin (láurea máxima do sistema de mensuração de êxito criado pela marca de pneus).
O modelo da cozinha-de-pinças (tweezer cuisine) insiste em certa renovação da concepção de restaurante, de serviço ou da infame “experiência” - e mesmo até da gastronomia. Ora, a gastronomia é um veículo de transformação, portanto não se limita à restauração elitista da cartilha europeia dos modos, técnicas e representações. O que fazemos dela é a questão a ser enfrentada.
Movimentos do setor da referida haute cuisine (alta cozinha, fine dining ou alta gastronomia, como preferir) remontam às divisões da sociedade em castas nas mais antigas civilizações - embora a concepção ocidental de restaurante seja moderna. Veio a cozinha clássica francesa, a nova (nouvelle cuisine), a molecular… até chegar à minimalista, apegada ao ingrediente, o caso Noma.
Em comum, todas as ondas gastronômicas buscavam inovação tecnológica, estética e simbólica sob o sistema embrutecido das relações trabalhistas desequilibradas e de um falso senso de sustentabilidade.
Aliás, como toda iniciativa do sistema laissez-faire de produção de bens de consumo, inovar é preciso. Inovação, como a tal experiência da mesa, também tem sido usada para justificar operações insustentáveis, que têm como princípio a máxima exploração e expropriação do ser humano em nome da concepção de uma nova safra de objetos de desejos, cujo aspecto inovador limita-se ao lado de fora, O tempo em que por dentro adoece.
Os sinais vêm de longa data. Esse jugo da perfeição levou Bernard Loiseau ao suicidio em 2003. Aparentemente, a tragédia se repetiu com outro nome proeminente cravejado de estrelas, Benoît Violier em 2016, então considerado pelo governo francês o melhor chef do mundo.
Em 2017, a estrela Michelin faz um de seus maiores esforços para romper com o eurocentrismo e o elitismo do prêmio ao conceder suas tão cobiçadas estrelas à tailandesa Jay Fai, que faz comida de rua em Bancoc. Ela devolveu a estrela. Muitos seguiram (e seguem) rejeitando este símbolo da exploração, agora também exercida pelo consumidor e sua avidez tóxica por experiência.
O sistema de trabalho especificamente na gastronomia - sobretudo no círculo dos restaurantões premiados - tem como peculiaridade uma grande competitividade e busca de profissionalização e aprendizado baseado apenas na composição curricular. Em outras palavras: submete-se a trabalhar de graça em troca da experiência que vai brilhar no LinkedIn. Afora questões graves como assédio sexual e moral. O esquema da cozinha opera baseado na lógica defasada da hierarquia militar, da humilhação e do dar o sangue (literalmente).
Por esses e outros motivos, o segmento da restauração tem a característica de alta rotatividade em suas posições. Se um restaurante como o Noma, que cobra 500 dólares por um jantar de tantas etapas, não consegue pagar as contas e viabilizar relações justas com agricultores e demais participantes do círculo virtuoso da alimentação comercial, resultando em lucro e impacto social, para quê existe?
Alarmista, eu? Não. É uma pergunta que precisa ser feita. Outra é: quem se beneficia disso? Michel Maffesoli foi certeiro em sua obra Ecosofia: uma ecologia para o nosso tempo ao apontar os sintomas da devastação. Não são apenas nossas florestas e biomas a passarem por essa aniquilação promovida pela ganância humana. O meio ambiente é uma esfera ecológica. A outra ocorre no domínio mental, individual e coletivamente, Devastação do estado e da natureza humana.
Lendo a carta de Redzepi fica claro que é por aí a questão à qual deseja corrigir em seu percurso. E, por isso, vejo com tanto interesse esse manifesto do Noma 3.0. Parêntesis: o Noma sempre viveu de grandes ciclos, em busca justamente de um equilíbrio que faça sentido para essa relação entre serviço, inovação e sustentabilidade - vide as operações itinerantes pelo Japão, México, etc.
Entre murros em ponta de faca e o oba-oba da gastrolândia dos chefs estrelados, acredito que aponta para uma possibilidade importante e denuncia, de certa forma, a insustentabilidade dos discursos e dos modos da alta cozinha.
Enfim, Noma conclui haver um esforço de uma equipe enorme para atender a poucas bocas. Falamos de um restaurante cujas atribuições não se limitam ao pia, ao auxiliar de cozinha, ao chef de partida… era uma estrutura na qual constava chef até para o forrageamento ou o extrativismo silvestre, outro para cuidar de fermentações... Admirável. Insustentável.
O Noma participa e alimenta essa cena da gastronomia do espetáculo, obviamente. E, como tal, transcende o espaço físico e habita o imaginário, constituindo uma experiência indiferente do que representou enquanto esteve aberto para milhões de pessoas que conhecem a casa. Afinal, ele se comunica mais com as pessoas que nunca poderiam frequentá-lo a não ser por meio das narrativas audiovisuais.
Segue agora o caminho já pavimentado do El Bulli, o incensado restaurante catalão de Ferran Adrià, encerrado em 2011 e tornado laboratório de inovação e pesquisa. Fecham-se as portas, mas isso não significa o ocaso do Noma. Vai para o céu da experiência.
Comida de Pensar
Aliás, jovens. Essa discussão sobre o Noma compõe o centro do curso Comida de Pensar - Imersão nas Ciências Gastronômicas, que ministro desde agosto de 2020, sazonalmente, online pela Escola de Humanas. Se quiser embarcar nessa viagem e compreender o mundo da gastronomia pelas lentes das ciências humanas, da comunicação e da filosofia, convido a se inscreverem na turma de 2023, que começa dia 23 de fevereiro. Os encontros online e ao vivo (com aulas gravadas disponibilizadas) ocorre sempre às quintas, 19h, pelo Zoom.
Acesse www.comidadepensar.com.br para todos os detalhes e inscrições.
Coffice do dia: Casa Almería (DF)
O ponto onde funciona há um par de meses a novíssima Casa Almería, na 104 Sul, em Brasília, foi ocupado antes, durante três décadas, por um dos restaurantes mais clássicos da cidade, o Carpe Diem (atualmente reduzido a uma unidade no CCBB). O Carpe Diem estava decadente, descuidado e engolido pela nova dinâmica da entrequadra 103/104 Sul, agora vocacionada à gastronomia.
Quem conhece o Plano Piloto sabe haver entrequadras designadas informalmente pela concentração do tipo de serviço ali prestado: Rua das Farmácias, Rua das Elétricas, das Torcidas… e esta rua meramente numérica adquire status de mais uma rua dos restaurantes - a original continua sendo a 404/405 Sul.
Casa Almería se favorece deste perfil renovado do comércio alimentício. Do outro lado dela está o antigo (para os padrões da jovem capital) China. Passou por uma reforma na fachada. Precisava. Daí desce para as jovens e descoladas The Plant e Teta Cheese Bar, a pizzaria Fratello Uno, um Açaí Puríssimo, uma The Coffee até chegar ao novo francês com ares bem mais italianos Marie Cuisine, tomando o lugar antes ocupado pela então decadente hamburgueria Marvin.
Na outra extremidade da mesma rua da Casa Almería, uma parrilla uruguaia, Mercado del Puerto. Sobe passando o Domaine Bistrô e um também renovado Café da Mata, além de uma franquia da The Healthy, outra da “cookeria” Duckbill e mais uma parrilla uruguaia: Toro. Voltamos do rolê da nova rua dos restaurantes ao Casa Almería, em posição privilegiada, se esgueirando pelos jardins públicos.
Depois deste waze teórico, conduzo vocês a um novo coffice, portanto. O empreendimento deriva do restaurante de influência mediterrânea/espanhola Almería (Clube de Golf de Brasília). A proposta, contudo, é muito diferente. Reúne padaria, cafeteria, empório, adega (ainda tímida), rotisseria, salumeria, confeitaria e bistrô. Funciona de terça a domingo desde cedo até de noite.
Percebe-se que a nova inquilina ilumina com mais variedade de serviços aquele comércio. É um lugar bem convidativo estruturalmente. Espaçoso, com ambientes internos e externos, wi-fi, tomadas e bom café para nós praticantes do coffice. Pães de fermentação natural, regra dos estabelecimentos neogourmets, indicam um cardápio com muita qualidade. Provei apenas o café da manhã. Ótima tapioca, bolos fofos, torradas de sourdough, ovos mexidos, salada de frutas impecável, iogurte natural… as opções correspondem em qualidade ao nível de investimento ali feito.
Vale conhecer, mas evite (ou se programe) para os fins de semana. São lotados. O bom praticante do coffice saberá usar bem os momentos de ociosidade para trabalhar ou estudar sossegado.
Olá, Guilherme! Li hoje, pela primeira vez, o Coffice. Um delícia começar a manhã com os textos da publicação. O bom humor e a leveza estão entre as minhas metas para este 2023 e os encontrei aqui. Não dá vontade de parar de ler. Eu e Klecius somos fãs de uma cafezinho e dos lugares da cidade que o oferecem com conforto e surpresas. Obrigada por tornar a segunda-feira um dia feliz.