Leituras gastronômicas #3
Novidades (ou não) bibliográficas saborosas e instigantes para você degustar
Para esta terceira edição do Leituras Gastronômicas de Coffice, para você sentar num canto, acompanhado de um bom café e de tempo de qualidade, separei algumas novidades não tão novas, mas muitíssimo novas. Explico. Há um primeiro livro (um petardo histórico, na verdade) de 1922 reeditado lindamente pela jovem Boníssimo Edições; outro que saiu ano passado editado pela Lutas Anticapital que é de uma tese sociológica de doutoramento defendida em 2020; e outro que podemos chamar de um dos poucos neoclássicos da crítica gastronômica nacional, de 2018, editado pela CLA.
Estamos falando, primeiramente, de talvez o primeiro grande registro bibliográfico da culinária afrobrasileira: A Arte Culinária na Bahia, do intelectual abolicionista baiano Manuel Querino (1851-1923). Querino não viu este livro nascer. Escrito em 1922 e publicado somente seis anos depois, a obra coroa a segunda fase das pesquisas de Querino dedicadas à diáspora africana na Bahia, especialmente. Em meio às pesquisas de cunho cultural, envolvendo o lugar do africano e descendentes deste povo que fora escravizado, uma das suas maiores contribuições passa justamente pela comida.
Em seguida vamos da pesquisa profunda, atenta, necessária e emancipatória da cientista social Bianca Briguglio: Cozinha é Lugar de Mulher? A partir desta provocação insistente na cultura ainda excessivamente patriarcal, sobretudo na cadeia produtiva da restauração, Bianca traz um estudo sociológico acerca daquilo que tratamos semanalmente em Coffice: as questões relacionadas à divisão do trabalho. Mas a ênfase dela é justamente na questão de gênero.
Por fim, recuperamos um, como disse, neoclássico brasileiro: Eu Só Queria Jantar, ótima e divertida coletânea dos textos sagazes do crítico Luiz Américo Camargo
(mais conhecido pela sua passagem pelas páginas do Estadão por mais de década). Já conhecia muitos dos escritos deste mestre-colega paulistano, mas ganhei dele uma cópia autografada que foi minha leitura de férias agostinas. Talvez a maioria o conheça hoje pelas publicações acerca da panificação — tema ao qual se dedica mais avidamente como pesquisador, com dois livros dedicados ao tema: Pão Nosso (2016) e Direto ao Pão (2019), ambos pela Senac São Paulo.
A Arte Culinária na Bahia
De Manuel Querino
Um livro de culinária que começa falando de samba. Esta proeza foi graças à sacada da Boníssimo! Edições em colocar a pesquisadora Maíra de Deus Brito, colega jornalista agora dedicada muito à pesquisa das questões raciais e de gênero pelas lentes dos Direitos Humanos, para assinar o prefácio. Ousado.
Poderia até buscar as tantas pesquisadoras e mestras acadêmicas da gastronomia que florescem no nosso meio acadêmico, mas aprouve ao editor esta compreensão de que a obra de Querino não se limita aos estudos gastronômicos, ao contrário, os atravessa. Afinal, o estudo da gastronomia é eminentemente transdisciplinar. Querino fora um dos primeiros a apresentar isso com este livro, conforme nos elucida o editor da Boníssimo!, Rosualdo Rodrigues (ele próprio um jornalista gastronômico e cultural e pesquisador das nordestinidades musicais e, agora, culinárias) em sua nota à nova edição.
Ver Arte Culinária na Bahia de volta às prateleiras é um ótimo refresco para tempos de necessária defesa de obviedades (como a luta antirracista e a enorme contribuição afrobrasileira à culinária). Embora tido como referência maior de “guia” culinário, um repositório do receituário baiano, o livro traz um fortíssimo caráter emancipatório ao desafiar a tese da democracia racial e mostrar que a formação étnica da culinária da Bahia, embora, sim, congregue as influências indígenas, europeias e africanas, não se limita gerenalizadamente a essa discussão. Mas, claro,é inegável a contribuição desse estudo diretamente para a culinária, considerando, sobretudo, a criação de uma arca de receitas tipicamente (ou puramente, como Querino aplica) africanas.
Cozinha é Lugar de Mulher? — A Divisão Sexual do Trabalho em Cozinhas Profissionais
De Bianca Briguglio
Não sei quantos testemunhos colecionei em meu — relativamente pouco — tempo de professor de gastronomia das mulheres que estavam, estiveram ou se preparavam para atuar na cozinha profissional. O paradoxo da mulher na cozinha retine justamente na construção patriarcal de que seu lugar é na cozinha doméstica, enquanto na cozinha profissional o espaço é do homem.
Bianca Briguglio elucida, em profundidade de pesquisa bibliográfica e de campo, como opera o sistema da cozinha profissional e desmistifica o mundo da gastronomia, com sua representação glamourizada midiaticamente. Uma profissão baseada em profissionais resignados, obcecados por sucesso com uma história de superação calcada na memória afetiva e no sonho do reconhecimento materializado em prêmios, estrelas e capas de jornal.
Essa premissa é desconstruída pela professora a partir de ricas e pujantes entrevistas com profissionais da gastronomia, com ênfase nas jornadas de trabalho cruéis e no combo da precarização da atividade: longas jornadas, salários ínfimos, informalidade, ausência de direitos e muitos, muitos casos de assédio sexual e moral.
Aqui entra a perspectiva sociológica, para fazer um comentário acerca da masculinização das cozinhas profissionais, com uma imersão sobre as relações de gênero da dimensão do trabalho, com um viés também de raça, considerando, sobretudo, as mulheres negras da profissão.
Um livro que chega no meio da crise da contemporaneidade, da uberização do trabalho e do desmonte de políticas trabalhistas. Indispensável.
Eu Só Queria Jantar
De Luiz Américo Camargo
Luiz Américo Camargo é, provavelmente, o crítico gastronômico (espécie em extinção) de escrita mais elegante, lúcida e pertinente que temos no Brasil. Não vai pelo caminho da ofensa, nem pela língua ferina demais. Astuto, mas nunca complacente, ele reúne neste livro 120 textos publicados, sobretudo, no Estadão, entre críticas, crônicas e pensatas, uma perfeita “tese” para conjugar as (muitas) dores e (nem tantas) delícias do ofício.
Para o público, consiste no acesso prazeroso à arte da observação e da percepção da experiência gastronômica, em forma de retórica, além de um mergulho pelas entranhas dessa atividade, vista como glamourosa e invejável. Para mim, em especial, por dividir a carga e as idiossincrasias desta profissão, o sentido é muito mais agridoce.
Reflete esse drama preconizado no título — cunhado em 2008 pelo finado blog do autor. Há muitas intempéries da vida do crítico, que consistem em receber inadvertidos mimos, um esforço de compensar o prato do cardápio com pitadas extras de elementos para beneficiar o julgamento do crítico, mas cujo efeito é contrário.
Pelas lentes das experiências de Luiz, por São Paulo e com passagens por outros cantos do Brasil e do exterior, temos ainda acesso a um momento central de virada da gastronomia — da ampla profissionalização e do imaginários midiáticos da atividade, tida falsamente como luxuosa, até a banalização da gourmandise (gourmetização). Assim, ele captura o zeitgeist da presente geração, como documento para o porvir.