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Esta edição foi escrita acompanhado de um cappuccino com leite vegetal Nude
A cada ciclo de leituras gastronômicas que terminou (ou me programo para começar) trago para as páginas desta cafeteria-escritório no ciberespaço algumas impressões das novas obras que pintaram no mercado literário com esta temática. Aceito indicações, viu? Para esta edição da minha prateleira de leitura que recomendo exclusivamente a vocês assinantes pagos, constam três magníficas obras de vanguarda, cada qual em uma perspectiva de pesquisa, abordando temas marginalizados.
Começamos pelo The Philosophy of Curry, da jornalista indiana radicada em Londres e especializada em escrita gastronômica Sejal Sukhadwala. Livro disponível apenas no original em inglês - lançado final do ano passado e que revela o que está por trás histórica e filosoficamente do curry. Em seguida, falo das primeiras impressões do inspirado e inspirador livro sobre coquetelaria brasileira, Da Botica ao Boteco, da jornalista, escritora, mixóloga, bartender e pesquisadora paulista Néli Pereira. Encerro com um livro que ainda não li, pois será lançado nesta semana. Mas, de antemão, pelas pessoas envolvidas, contribuo com a divulgação deste grande feito que será Memórias e Receitas das Cozinhas dos Quilombos da Cidade do Rio de Janeiro, pesquisa coletiva pelas acadêmicas Anna Tojal (UFRJ), Adriana Silva (UFBA), Jo Damião (Nucane, UERJ), Célia Patriarca (Culinafro, UFRJ) e Rute Costa (Culinafro, UFRJ) e Jessica Marinho (Nucane, UERJ).
The Philosophy of Curry, de Sejal Sukhadwala
O curry é tido como estatuto das cozinhas indianas, quase como a grande ementa da expressão da cultura alimentar do país que em breve será o mais populoso do mundo. A jornalista indiana especializada em gastronomia Sejal Sudhadwala mergulhou em uma pesquisa histórica para responder a uma “simples” pergunta sobre o que seria esta receita no livro The Philosophy of Curry (British Library, 2022). Radicada em Londres desde criança, a autora desvenda como o colonialismo britânico protagonizou a narrativa do curry, sendo esta uma expressão genérica para denominar os cozidos e ensopados produzidos em várias regiões da Índia, por séculos antes da invasão do homem branco.
Curiosamente, um dos lugares onde primeiro se nota o surgimento da expressão é em Goa, sob o domínio colonial português, de onde adveio o termo “caril”. Aqui, a escritora não propõe uma solução lexical, mas sim aceita a complexidade da história. Basicamente curry foi criação britânica. Não a receita, mas o juízo sobre as diversas receitas baseadas em massalas e no processo de cozimento em ensopado (método esnobado então pelos colonos ingleses, relegado a classes pobres).
Curry, entende Sejal, designa tanto uma planta, como a mistura de temperos (massala) e as receitas que as utilizam. Curry, portanto, é mais do que um “prato nacional”, é uma filosofia. A obra, ao final, consegue preencher uma lacuna bibliográfica quanto à origem do curry, curiosamente muitíssimo limitada para a dimensão continental do país, sua tradição e fama. Este pode ser uma referência contemporânea à altura da grande historiografia culinária indiana de K.T Achaya, Indian Food - Histórica Companion.
Da botica ao boteco - Plantas, garrafadas e a coquetelaria brasileira, de Néli Pereira
Da botica ao boteco é um livro que asfalta uma das discussões mais marginalizadas da nossa história gastronômica enquanto povo. Falamos muito da comida de comer, mas pouco da comida de beber, de curar, de bendizer, etc. Caso notório a exemplificar na prática está falta de perspectiva está no jantar da posse de Lula em 1° de janeiro. Houve um grande esforço para se contemplar no menu várias expressões e ingredientes regionais brasileiros, enquanto no rol de drinques nem mesmo a cachaça aparecia. Só birita da gringa, como apontou cirurgicamente a colega de pesquisa gastronômica Tatiana Rotolo e a própria Néli e outros experts nesta matéria da Folha.
Antes de mixóloga, Néli demonstrava grande habilidade com a palavra escrita e falada, em sua carreira pregressa de jornalista (com passagens pela BBC e pela BandNews. Como empreendedora do ramo de restauração, foi consultora (ainda é, se não me engano) até abrir seu Espaço Zebra, em São Paulo. Na capital paulista, sua atuação toma um curso muito peculiar por uma coquetelaria tipicamente brasileira.
Num universo em que qualquer macetada de siriguela na caipirinha ou qualquer raspada de cumaru num uísque sour ganha pecha de coquetelaria brasileira, Néli nos ensina a olhar para a ancestralidade que forma a cultura e a memória nacional. Ao invocar as garrafadas medicinais e associar a anos de extensa pesquisa por plantas e suas finalidades, a autora compõe um livro memorial, prático e filosófico até para a compreensão do que pode ser a coquetelaria brasileira.
Menos interessada em discutir ou definir onde começa e onde termina a brasilidade nos drinques, Néli generosamente compartilha com o leitor e a leitora de modo didático o estudo tão minucioso que fez até chegar na sua “carta” literária de drinques, de modos e de possibilidades da intersecção dos biomas com a composição de coquetéis, com apreço enorme pela contribuição popular e ancestral na alquimia das bebidas, especialmente as alcoólicas.
Ler Néli é enebriar-se num passeio literário, poético e receituário da coquetelaria brasileira. Do mesmo modo como o boteco convida à degustação - e você pode lá ter seus momentos de bebedeira -, a autora sugere prová-lo aos poucos, sem entornar de uma vez. Quer dizer, pode virar tudo. Mas, depois, volte devagar, tome seu tempo e saboreie a leitura. E, se quiser se arriscar detrás do balcão doméstico, por que não tentar reproduzir algumas receitinhas?
Memórias e receitas das cozinhas dos quilombos da cidade do Rio de Janeiro, organizado por Jorginete Damião, Rute Costa, Célia Patriarca, Anna Carolina Tojal, Adriana Silva e Jéssica Marinho
Resultado de relevante pesquisa patrimonial de grandes escritoras-pesquisadoras da Alimentação e da Nutrição do Rio de Janeiro, Memórias e Receitas das Cozinhas dos Quilombos do Maciço da Pedra Branca pode ser baixado gratuitamente no site do Programa de Agricultura Familiar e Agroecologia AS-PTA (ou clicando na foto do livro).
Realizado no contexto do Projeto Sertão Carioca - Conectando Cidade e Floresta, a produção literária tem parceria com culinaristas dos quilombos Camorim, Cafundá Astrogilda e Dona Bilina e com o Núcleo de Alimentação e Nutrição em Políticas Públicas, Instituto de Nutrição da UERJ e do Culinafro, centro de pesquisa da UFRJ.
O formato em espiral é sugestivo: justamente para ser um receituário doméstico, ao final, com pautas em branco nas últimas páginas, para leitor e leitora se dedicarem a colocar em prática o aprendizado.
Na primeira parte, as pesquisadoras Jorginete Damião, Rute Costa, Célia Patriarca, Anna Carolina Tojal, Adriana Silva e Jéssica Marinho se dividem em narrar o caminho metodológico utilizado (de conversas com as quilombolas) e introduzir a nós uma afroperspectiva da alimentação e seu desdobramento para as culturas quilombolas.
Leio com deleite esse generoso naco de conhecimento que as autoras/organizadoras nos apresentam em forma de escuta. Seria a escrevivência de Conceição Evaristo posta em prática para documentar práticas, métodos e receitas de culturas tão invisibilizadas por tanto tempo.
O método de escrita das receitas teve como inspiração o clássico A arte culinária na Bahia, de Manuel Querino. Ou seja, por meio de um processo de inventário dos processos de produção da receita, com descrição detalhada das etapas utilizadas e os processos artesanais da cozinhas narrados pelas participantes dos encontros.
Assim, a maior parte do livro é dada à descrição das receitas, divididas por cada um dos três quilombos representados. Há combinações e processos já conhecidos na gastronomia urbana, como o peixinho da horta empanado, do Quilombo do Camorim; mas outros bem curiosos e pouquíssimos retratados como o sonho de frita-pão de Dona Nata e o bolo de ora-pro-nóbis de Tati Mesquita, do Quilombo Cafundá Astrogilda.
Despertou-me a melhor das expectativas conhecer as produções da cozinheira Leo Insfran: galinha com mamão verde, guandu (uma técnica de cozimento de costela suína ou mesmo galinha) e a sopa de mato (do pai dela, Valdir de Oliveira Carvalho). Esta última é uma sopa de “feijão de ontem”, sem carne, mas que vai “tudo o que tiver plantado” (jiló, milho, quiabo, aipim…). O nome vem do jargão que antecede seu preparo: “pega esse mato aqui”.
Para ler salivando.
Leituras gastronômicas #2
Cêlente