Esta edição foi escrita acompanhada de uma moka italiana com o café Antes de Mais Nada, torrado e embalado por Mokado Lab, a partir de grãos arábica catuaí vermelho IAC 144, produzido por Horácio Moura, no Sítio Três Barras, nas Matas de Minas Gerais.
Sempre penso muito no que farei com os ossos após a ceia natalina. Já saiu empadinha, empadão, sanduíche à Ross Geller (como o moistmaker), mexido, risoto… mas nunca parei para pensar no enterro dos outros ossos, que sempre lembramos nesta época do ano: os do ofício.
Será que tem receita para transformar a carcaça do labor em algo mais palatável? Eis uma questão premente à das resoluções de ano-novo. Labor, diferentemente do trabalho, embora caiba como sinônimo a este, trata do ter que fazer, do inevitável. Não foi à toa que retiramos a comparação do labor ao da faina dos marinheiros em alto-mar. O único escape é o oceano. Ou seja, melhor aceitar.
Dia desses falamos sobre a desrotina e hoje voltamos a ela. Pois não é a rotina que faz o labor, senão o labor que exige a rotina. Na sinuca-de-bico do dia a dia do trabalho, os coaches profissionais e muitos de nós, CLTs, autônomos, MEIs, servidores, etc., entendemos a necessidade de programar o labor (doméstico ou não) por estratégias:
Fazer as tarefas mais árduas no primeiro horário do trabalho ou começar pelas mais fáceis; aquelas que exigem mais disposição mental devem ser realizadas ainda de dia, mas também podem ser feitas de noite para aproveitar o momento criativo que acende em muitos após o crepúsculo. Há regras e regras. Jogos de possibilidades.
E seja qual for a preferida para ser adotada, ela deve considerar a superação do ofício como bagagem pesada na caminhada laboral. Colocamos as metas profissionais, mas não cessamos de carregar nossas matulas de tralhas (de ossos). Qual o ajuste pode ser feito? Talvez criar uma boa receita com essa ossada toda. Cozinhar um baita molho rôti, transformar o labor em peça de oxigenação da vida profissional.
Enxugar o gelo não significa apenas o trabalho cíclico, longo, demorado. Mas também abastece o ímpeto revolucionário. As lutas por direitos do proletariado surgem dos ossos do ofício. Isso não esconde a revolta de passados os anos, seguirmos a enxugar o gelo (vide esses últimos quatro anos). BNegão batizou um disco com essa expressão. A música-título fala de outros desses ossos, neste caso da juventude negra, do “quilombo moderno”. É um petardo que fará 20 anos em poucos dias, mas ecoa, infeliz e visceralmente, atual. Seguimos “pendurados por um fio de cabelo”.
De outras vezes, ao encarar o labor entendemos trabalhar pelos restos, pelas sobras. CEOs de MEI ou muitos pequenos empresários estão exatamente neste lugar. A conta que não fecha. O fazer e o conquistar que só serve para pagar as contas. Uma notícia ruim - não sei se já lhe disseram: vocês não são empresários!
O empreendedorismo por necessidade escamoteia esse enxugar do gelo. Você se torna empresário, passa nota, mas basicamente está apenas se empregando para compensar a falência do sistema trabalhista em recompensar justamente o trabalhador, o trabalho e, claro, o labor empreendido. “Hoje o indivíduo se explora e acredita que é realização”, sabiamente apontou o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han em notória entrevista ao El País em 2018.
Com mãos ainda untuosas do enfastiante ato de arrancar cada fibra de carne presa às carcaças natalinas, damos por encerrado o enterro dos ossos e, com ele, o ano tenso e periclitante de 2022. Agora 2023 taí, pra enterrarmos a lógica da autoexploração dos ossos do ofício.
Coffice do dia: Alegro Pani & Café (DF)
Por vezes, vocês vão se deparar com um coffice que pode não ser lá tão adequado. Faço isso pois é importante que haja resenha coerente e completo de todos os lugares pelos quais passar. Alguns são mais frios, objetivos, outros mais entusiasmados. E haverá aqueles sincerões, como este aqui. A cafeteria brasiliense Alegro Pani & Café, com unidades no Sudoeste e na Asa Norte (sobre a qual relato) foi uma dessas experiências estranhas, para falar o mínimo.
A primeira impressão é de certa pompa e elegância, desde o letreiro aos pães e confeitos aparentemente muito bem apresentados em exibição por trás do display de vidro. Ao fundo do salão uma enorme bancada onde opera o barista ou o mixólogo. Há wi-fi aberto (sem senha) e pontos de tomada com mesas com bom distanciamento. Tecnicamente, um ótimo lugar para se praticar o coffice.
Por trás dessa impressão, tudo parece exalar um ar de cafonice e desleixo. Do cardápio, macarrons chicletudos, de tamanhos irregulares, excessivamente doces e colorizados artificialmente. O croissant, massudo, não desenvolveu corretamente. Pedir um sanduíche com as meia-luas francesas resultou em um trabalho dos mais descuidados. A entrega pelo garçom - que como seus colegas ignoraram sumariamente minha presença por cinco minutos dando pinta de que pousaria por ali - chegou a ser agressiva: tão alto fora o tilintar da louça sobre a mesa, que pensava ter rachado a xícara de café, cujo líquido se esgueirou até as bordas e, então escorreu até formar uma pequena poça no pires. É um desrespeito ao cliente, mas também ao barista, ao torrefador e ao agricultor.
Alegro deixou meu dia mais triste, mas como nada é fácil na vida do CEO de MEI, a gente engole o café, paga a conta e toca a vida.
O texto tá ótimo e a resenha descreveu perfeitamente o lugar. Bom 2023!
Aaaaah nem fale, nem fale... esse ano de trabalho me lembra a música do nosso conterrâneo, Kelton; “Parece que te deram flores pra cuidar o ano inteiro...parece que esse chão vermelho não te largar...” enfim, vem aí 2023!