Talvez a primeira declaração que fazemos na vida é a do nosso próprio nome. Mas a próxima grande declaração do sujeito provavelmente será a de amor. À mãe, ao pai, aos irmãos, aos amigos, depois ao interesse romântico e, muitas vezes, ao próprio trabalho e ao dinheiro — o deus pagão das posses, também chamado na cultura cristã de Mamom.
E aí o ser humano já se corrompeu, como o script da vida previsivelmente roteirizou. Sobram as outras tantas declarações. Há ainda uma de autoconhecimento ou de autoamor: a declaração de identidade de gênero (tão fundamental para que a pessoa se pertença em sociedade, mesmo numa sociedade que a rejeita). De resto, de fato, restam-nos as declarações formais apenas.
A de imposto de renda é a mais urgente nesta semana, fim do prazo para acertar as contas de 2022 com o Sr. Leão (até o dia 31/5, fica o alerta). Esta deve ser a declaração mais sofrida de se fazer depois da de falência e da de óbito. Percebo no IRPF uma espécie de jogo sádico do Estado para testar nossa capacidade de ser verdadeiro — muitas vezes a nossa capacidade só de organização mesmo. E se não o for, que venha a malha fina.
Malha-fina soa como um instrumento medieval de tortura, sabe? Neste caso de tortura burocrático-psicológica, em que a pegadinha está em você ter que declarar ao governo algo que o ele já sabe — sob pena de ser arguido ou compelido a corrigir sua declaração até que se prove verdadeira. Certa vez caí nela. E o mais doido é que a Receita me falou que havia uma incongruência (ou seja, ela sabia), mas que eu precisava descobrir por minha conta qual era. A leoa não é só feroz, mas dissimulada.
Verdade configura pressuposto do intangível. Buscamos parâmetros de verdade, na real, em uma combinação tácita da interpretação dos códigos sociais, da legislação e da ética pessoal. Só aí abrimos para, ao menos, três verdades possíveis.
No mundo do trabalho, nossa referência maior nesta cafeteria-escritório do ciberespaço, a verdade está numa xícara de café. Fico muito satisfeito em ver os ensinamentos, causos e ideias do nosso saudoso maestro do movimento armorial, Ariano Suassuna. A verdade da xícara de café é uma dessas prosas repetidas de palestras em palestras pelo autor paraibano (e hoje viralizadas no TikTok).
“Falta de personalidade” aparece como um eufemismo pitoresco para essa possibilidade de ser ou não verdadeiro. A solução, irremediavelmente, redunda em fazer uma declaração. “Não tomo café”. Levou 57 anos para Suassuna confessar. Pra outras coisas ele, provavelmente, deve ter sido muito mais ágil e assertivo, como todos somos.
Declarar-se é um gesto tão banal quanto pesaroso ou até intransponível. Há quem sofra de amor sem se declarar até o fim da vida; há quem se declarou sem pestanejar e sofreu ou se regozijou de amor para o resto da vida. O primeiro nunca soube; o segundo já até superou (para o bem ou para o mal) ou resolveu. Há declarações que emitimos regularmente, há declarações que nunca vamos emitir.
A declaração gera compromisso. Daí as declarações de trabalho hoje serem tão efêmeras — e frouxas, juridicamente inclusive. A flexibilização da verdade — que veio com a flexibilização do trabalho é uma das características dessas relações oxidáveis desses tempos.
Venho aqui mais para declarar (hehe) que, se é para nos declararmos, que o façamos de verdade, com intencionalidade. Às vezes nos declaramos com a tal verdade, mas às vezes nem mesmo compreendemos a nós mesmos ainda. É natural. Pode não ser a melhor versão da nossa verdade, mas que seja um processo de aproximação de se revelar aquilo, escondido em nosso âmago, em nosso imo.
Coffice da semana: Luiz Café Conceito (GO)
Diferentemente das cafeterias de grãos especiais que pipocam (ainda bem!) em cada esquina dos centros urbanos, a Luiz Café Conceito carrega consigo uma relação muito mais estreita com a produção cafeeira. A cafeteria está, hoje, situada no prolífico Setor Oeste de Goiânia. Trata-se de uma consequência do trabalho de quatro gerações de produtores de cafés, que desde 2015 também apresentam um trabalho notório na ponta da cadeia: no serviço ao público.
Portanto, aqui há desde o domínio da plantação até a extração do líquido que vai à sua xícara em todos os principais métodos. Os grãos vêm das fazendas da família Heitor em Patos de Minas (MG), onde são cultivadas varietais 100% arábica de catuaí amarelo e vermelho, mundo novo, IAC-125, acauã, catucaí e guará.
A cafeteria do Luiz é um charme. Afora o piano ostentado no ambiente interno próximo à ilha de baristas, o quintal é bem colorido, com diferentes tipos de mobiliário (estofados, tamburetes, sofazinho) e muitas plantinhas. Do menu, há ótimos cafés, nem se fale, mas também receitas bacanas a partir dos métodos, a exemplo do cold brew com água de coco. Do menu de comes, há os básicos de cafeteria e mais criações da casa, como o sanduíche de pernil agridoce e o bolo de laranja com damasco.
Ah, o piano fica ali à disposição pra quem quiser esmerilhar (na parede há sempre algum violão dependurado também). Soube da fama dos Saraus do Luiz, mas não vi uma programação do evento. Já rolaram 45 edições, nas quais há um palco aberto para você chegar junto de seu talento e tocar.
Cafeterias, restaurantes, bares, feiras são por si iniciativas com vocação à promoção cultural. Poucos, contudo, assumem de forma intencional e ampla a este chamado. O Café do Luiz é um desses bravos redutos compromissados na promoção das artes e da cultura de forma direta. Vida longa!
Adorei a "leoa feroz e dissimulada" e a reflexão sobre o governo que sabe mas finge que não.