Uma obviedade, certamente. Quando cunhei essa expressão, coffice, imaginei algo mais do que apenas o sonoro trocadilho resultante da substituição do prefixo “co”, de coffee, ao “home office”, do conhecido modelo de trabalho remoto adaptado para uma cafeteria. A corruptela veio e logo descobri outras tantas iniciativas ao redor do mundo recorrendo à mesma obviedade lexical para batizar toda a sorte de projetos, negócios e até… cafeterias.
Esta obviedade, contudo, carrega uma particularidade. Nela concebo uma discussão sobre a cultura do trabalho (e do ócio), a ser desenvolvida ao longo dessas publicações por aqui. Parto desse fenômeno nada novo, tampouco excitante, de se usar as dependências de uma cafeteria para finalidades a rigor adequadas para um escritório, para uma biblioteca ou mesmo para se fazer em casa. Há quanto tempo pessoas marcam reuniões de trabalho em restaurantes? Escoram-se em um balcão e sacam um livro pra ler? Pois é.
Um café, como modalidade de serviço de restauração e de hospitalidade, se define por ser um espaço privado de função pública. Ou seja, é só chegar chegando e puxar uma cadeira. Por se tratar de um comércio, espera-se que algo seja consumido para justificar a presença. A não ser que esteja “só olhando”.
A cafeteria é acessório da rua, da cidade; abrigo de flâneurs; um oásis para desconectados, sedentos e sonolentos; local de passagens e de encontros. O estabelecimento café exerce sua função de agregador de comunidades. É onde se reúnem colegas de trabalho, amantes, famílias. Também serve de pouso para a classe trabalhadora da solitude de autônomos e empreendedores, que atendem muitas vezes por outros apelidos mais gourmetizados: CEOs de MEI, nômades digitais… daqui a pouco pinta outra espécie, tipo, sei lá, saruês da blockchain.
Estudar, trabalhar, jogar, mexer no celular, ler um conto, surfar no metaverso. Seja para qual for o propósito, haverá um coffice pra te atender, nem que seja este aqui, perdido nos labirintos do ciberespaço.
Esta primeira foi uma newsletter de boas-vindas. Aproveito para deixar aqui o espaço aberto a permitir uma construção coletiva dos novos imaginários dessas interações sociais. Pode comentar, argumentar. E mande pra mim seus coffices de estimação. Vale de qualquer lugar do mundo.
Agora vamos às news:
Café em competição
Tanta coisa acontece no mundo do café para além da cafeteria que a gente nem imagina. Há um tempo campeonato de baristas virou uma coisa. Coisa séria. Aliás, estava na torcida daqui pela amiga, competentíssima e cafeinadíssima barista, mixóloga e cientista social brasiliense Mari Mesquita. Ela estava entre as competidoras do Coffee in Good Spirits, promovido pela BSCA, em São Lourenço (MG), e ficou em segundo lugar ontem! O campeão foi o já premiadíssimo Daniel Munari, do Royalty Coffee, em Curitiba (PR). A Revista Espresso cobre tudo por lá, para quem quiser mais detalhes.
Conheci Mari no seu tempo de Café Clandestino (413 Norte, Brasília) e rodando com sua BikeBrew pela capital federal. A mulher está voando. É uma requisitada palestrante e consultora. Quem já testemunhou uma aula de Mari fica certamente boquiaberto com o show que ela põe detrás do balcão no habitual traje autodesignado de “Mario Bros”: blusa vermelha e macacão azul-marinho. Habilmente, Mari administra coqueteleiras e dosadores, com suas caras e bocas, à medida que entrega generoso conhecimento salpicado por tiradas sagazes, respostas rápidas e enorme carisma e talento.
Curiosamente, o café foi um dos temas para outras duas competições. No recém-estreado reality show de competição gastronômica Iron Chef Brasil, da franquia japonesa de quase três décadas, em cartaz na Netflix; e no episódio da semana passada do Masterchef Brasil (sim, sigo acompanhando essa bobagem).
De trás para frente:
O Masterchef recorreu à fórmula preguiçosa de sempre, refém do merchan. Sinceramente, se havia ainda pouco propósito para este programa já num resta mais nada a sustentar tamanha enrolação. Veja você. O júri esculhambando cozinheiros amadores que “não fizeram o próprio molho” ou pegaram qualquer outro atalho para elaborar a receita, à medida em que o Jacã himself seleciona ervilha em lata, industrializada, pro povo cozinhar. Ervilha entalada! O merchan da vez foi um café de cápsula, nem lembro mais a marca. O nome, pra mim, soa como de um condicionador de cabelo, tipo L’Oréal, coisa assim. A turma teve que harmonizar pratos com café. Não deu bom.
No Iron Chef, tudo é mais contido. Não tem gritaria, não aparenta aquele ambiente tóxico do Masterchef. Um crítico do Paladar, no Estadão, inclusive caiu na narrativa quase desconstruída e decolonial proposta pelo reality show, a ponto de argumentar que o programa “prefere a gastronomia ao espetáculo”. Olha, fica bem claro que não. O espetáculo tá lá, fouets em riste! Para ser justo, o autor contextualiza que, de fato, no Iron Chef não se dá muita cancha pra treta e mais para o que tá rolando de receita, preparo, ideias etc.
Uma das provas foi de café. E, sim, não teve um merchan escamoteando a comida. O confronto foi do confeiteiro desafiante Paulo Rocha, do Président (SP), com a “iron chef” Carole Crema. Vieiras com café. Curioso. Mas o desafio foi mais pautado no doce e, sinceramente, é de se impressionar com o resultado que vemos em tela. Café é versátil demais, eis o êxito da prova. Deu bom. Achei bacana, fora a empáfia do Leandro Karnal no júri, porque, pelo jeito, é um programa que, sim, em alguma medida vai preferir o espetáculo. Neste caso, demonstrado pelos rolês aleatórios.
Coffice do dia
Bem-te-vis são criaturas das mais obstinadas quando se trata de arranjar comida. Observo demais aqui em casa essas aves onívoras capazes de limpar uma laje inteira dos insetos indesejáveis que se esgueiram até o cume da residência após uma dedetização. Sobra nada. Parece ter predileção por insetos, mas come fruta, pequenos répteis e, se der mole, a ração dos pets. Não sei dizer o porquê da escolha dessas brabinhas para ilustrar a parede lateral da Castália Artesanal, em Brasília (na 304 Sul).
Daqui escrevo esta primeira newsletter. Foi o coffice do sábado ensolarado de brisas expressivas que, por instantes, faz esquecer da estiagem brasiliense típica quase em seu ápice - 106 dias sem chuva agora.
Era uma padaria. Originalmente na 102 Norte. Expandiu anos atrás com esta segunda unidade na 304 Sul (escrevi à época da abertura sobre na coluna Prato Feito, que mantive por dois anos no Metrópoles). E hoje tem no portfólio da marca uma ótima pizzaria também. Tive birra especificamente com a unidade da Asa Sul por muito tempo.
Ela abriu enorme (em comparação com a primeira). Enormes sanduíches, enormes torradas (apelidadas toasts no vocabulário gourmet), enormes roscas de canela daquelas americanas (cinnamon rolls), enormes bem-te-vis.
Sinceramente, tudo muito bom. Os pães formidáveis desde sempre. Mas, sabe aquelas coisas que dão errado de vez em quando? Um café que deu uma estremecida na viagem até a mesa e seguiu mesmo assim, com as lágrimas de ébano escorrendo por fora da xícara; um sanduíche quente que veio frio, uma conta errada, um banheiro sujo… Pois rolou tudo isso comigo em apenas duas visitas.
Retornava só pelo pão no modelo pandêmico do pega-e-vaza. O que era uma pena, dada as inúmeras recordações que aquela quadra me traz. Primeiros ossos quebrados, primeiras cicatrizes no joelho, primeiro grito de “Vitória 1, 2, 3” no bete. Morei praticamente minha infância toda ali no bloco C da 304, exatamente no apartamento 101, bem coladinho nos fundos da Castália.
O bom é que recentemente voltei pelo pão e fiquei pelo café. E a tarde toda. Foi tudo diferente agora. Serviço ajustado, nenhum outro probleminha chato. Tomei um Civitá sensacional na V60, chamado Sazonal. Mesas ao ar livre, pontos de tomada em umas duas ou três delas, bom wi-fi, água da casa. Temos todos os critérios para praticar mais um dia em coffice.
E você? Tem um coffice preferido? Pode ser em qualquer lugar do mundo. Escreva pra gente. Seu texto pode ocupar este espaço ao final da newsletter.
Até a próxima segunda!
Fui na Castalia uma vez e a experiência me fez querer não ir nunca mais. Achei o ambiente muito sujo e o atendimento desleixado. Tinha comida no chão e pombos comendo as migalhas de pão… só passo lá no natal para pegar o panetone que é espetacular!!!!
"Um café, como modalidade de serviço de restauração e de hospitalidade, se define por ser um espaço privado de função pública. Ou seja, é só chegar chegando e puxar uma cadeira". Você me explicou tanto sobre os cafés nessa frase... são lugares de vida, como as feiras, mas gerados na sociedade capitalista. Potente reflexão que você tão bem resumiu.