Esta edição foi escrita acompanhada de um Rubi, blend de diferentes variedades criado e torrado pela Royalty Quality Coffee em Curitiba (PR)
Desde que a geração Vale do Silício instituiu a abordagem cool (hoje em plena decadência e até motivo de chacota) do ambiente de trabalho com mesas de pingue-pongue, pufes e videogames a alimentar um (im)provável ócio criativo, muitas empresas começaram a agregar espaços de lazer e descompressão em suas dependências.
Em uma das minhas atividades, tenho à disposição um desses passatempos. Na sala dos professores temos a mesa do quebra-cabeças. Já montamos coletivamente dois (um de 4 mil peças e outro de 2 mil, se não me engano). Há também um carteado ali, Uno, gamão, tabuleiro de xadrez… Não reclamo, pelo contrário, considero ótimos e necessários acréscimos para aumentar a qualidade no trabalho.
A questão do Vale do Silício transcende as empresas que ali nasceram. A absorção da cultura pelo mundo foi um grande fiasco. Era um tal de “dar folga” no meio do dia para trabalhadores, considerando esses pequenos mimos e a plástica de um ambiente modernex e descolado suficientes para aplacar a precarização dos contratos.
Tipo, a empresa só contrata no pejota, mas você pode jogar um PS4 no intervalo (ou um pingue-pongue, ou uma sinuca). Agrega-se muita coisa para o cuidado dos “colaboradores”, menos benefícios e direitos. Aí já é demais. “Precisa vestir a camisa”!
Um laboratório de exames médicos resolveu agregar à sala de espera de atendimento cantores de voz e violão. Profissionais. Remunerados. Reconhecidos pelo trabalho que desempenham. E, toda vez que vou lá tirar sangue, acho interessante essa vibe de seresta matinal pré-desjejum — às vezes rola um Fagner anos 70, noutras uma Adriana Calcanhoto, pra lembrar que a gente ainda vai ser furado e ter nosso sangue extraído em alguns minutos, e claro, uns clichezões de Ana Carolina e de Jorge Vercilo.
Só que, veja, música como trabalho. É importante a gente lembrar disso. Penso no professor, claro, mas estendo para todos nós cujas atividades envolvem em primeiro lugar a elevação do espírito humano — e não a produtividade escalonável do lucro pelo lucro ou do que convencionamos entender como atividade elementar.
Se ouvimos, como professores, o famoso “trabalha ou só dá aula?”, imagine o artista.
A construção ocidental, desde os gregos, sobre as dimensões do valor apontavam para um trabalho recognoscível como tal. Poeta? Artista? Vagabundos!
Esopo pariu na Grécia Antiga, em uma de suas fábulas, a metáfora da cigarra. Cigarra para nós. Parece-me que o original era o gafanhoto. Mas a temporada primaveril brasileira é dela, o inseto que não é inseto, que nasce da terra para desabrochar como flor em devir de pássaro. Idiossincrática essa cigarra, bicho-planta, planta-ave.
Nas recontações da fábula de Esopo, a ementa geral diz sobre umas formigas cretinas, milionárias, que passaram o ano acumulando para depois se recusar a dividir. O inverno vem e a cigarra passa fome, passa frio, perde o canto. “Foi cantar, dançou”!
É um erro já crasso da fábula ignorar o que já fora denunciado (inclusive por Emília e Narizinho no Sítio do Pica-Pau Amarelo): formigas são criaturas solidárias. Não recusariam abrigo à cigarra. Mas o pensamento de Esopo, lá atrás, já construía o que a distinção para a qual nossa sociedade apontava: muito acumúlo de riqueza para pouca (ou até nenhuma) alteridade.
Implicava a moral que a cigarra merecia morrer de fome e de frio no inverno, pois em vez de trabalhar como a formiga, carregando peso, ficara voando e cantando por aí.
E, logo, percebemos. A régua da nossa sociedade, hoje baseada inteiramente na ordem do capital, entende que o trabalho a ser remunerado, recompensado, celebrado e anelado é este do esforço reconhecívell das profissões “de futuro”.
Redunda no achatamento das possibilidades de existir, de ser e de produzir, onde não cabe a dimensão do lazer, a não ser quando o serviço nos é requisitado.
Vamos viver sem arte? Não seria ela um serviço essencial? Lembro da cena fabulosa dirigida por Frank Darabont sobre obra de Stephen King em Um Sonho de Liberdade (1994):
Há toda uma corrente de pensamento hoje, dentro da perspectiva da educação financeira mesmo voltada para compreender o lazer e o dinheiro gasto em arte e cultura (do barzinho ao cinema, do museu ao show badalado) como integrante do planejamento de gastos essenciais.
A realidade brasileira (da maioria da população) não ajuda, mas não há uma dimensão do trabalho sem a dimensão do trabalhador da cultura. Ela tem uma economia própria, aliás, proporcionalmente mais promissora que muitos outros setores.
A cigarra canta, pois este é o seu trabalho. Não é menor nem maior que o da formiga. Aliás, ai da formiga sem o trabalho da cigarra. Como bem ilustrou o poeta José Paulo Paes em Olha o Bicho (Ática, 1989):
"Mas sem a cantiga
Da cigarra
Que distrai da fadiga,
Seria uma barra
O trabalho da formiga!"
Coffice da semana: Caferante (DF)
Uma cafeteria paraguaia na Asa Sul de Brasília. Caferante é um projeto da empreendedora Nancy Baeza, que começou o trabalho em Vicente Pires, onde operava até o ano passado ou início deste. Agora está na 110 Sul, na Rua das Elétricas. Sim. É o único empreendimento que não vende soluções de iluminação ou áudio na entrequadra.
Não trabalha com cafés especiais, mas tem um café coado e um espresso do tipo “superior”. O legal são as comidinhas. Embora de essência paraguaia, a casa abriga — por entre as mesinhas de móveis de demolição com fundos para uma minúscula livraria e o jardim da quadra — receitas de várias nacionalidades sulamericanas.
Do Brasil, as coxinhas; da Argentina, a medialuna; do Peru, a torta tres leches; do Uruguai, da Argentina também e do Chile, as empanadas. E, do Paraguai, a famosa sopa paraguaia (que é um bolo, resultado de uma sopa espessa demais, que foi levada ao forno para ser passível de servir a uma autoridade). Também tem a clássica chipa paraguaia, que aqui chamamos de biscoito-ferradura ou biscoito de queijo.
Lugar charmosinho, funciona bem como coffice — há estrutura e tomadas. Valeria melhorar o café. Água da casa e um bom atendimento.
Dá pra ver o letreiro do Beirute refletido no vidro da prateleira da cafeteria!