Esta edição foi escrita acompanhada de um Café Moulaz, do Cerrado Mineiro. Um catuaí vermelho produzido por Jorge Fernando Naimeg, torrado pelo Mercado do Café e extraído pelo método Koar
O universo empresarial é feito de espécies de empreendedores individuais, como a história revela, ao menos desde os tempos de Croesus no antigo reino de Lídia, na Anatólia de 500 anos a.C. No mundo ocidental, dominado pelo advento do capitalismo, forjou-se a figura do self-made man. Não há uma tradução literal para o termo, que seria algo como “homem autoconstruído”. A tradução automática do Google já propõe como resposta o atalho para o qual aponta toda a filosofia por trás do termo: empreendedor.
Não obstante, os self-made men consolidaram o avatar do sonho americano, a partir da premissa do liberalismo econômico no século 18: do homem branco que construiu impérios empresariais de uma simples ideia, invenção, estratégia ou habilidade. Dos chamados founding fathers, Benjamin Franklin teria sido o original self-made man - e inspiração teórica da artista americana Bobbie Carlyle para sua famosa escultura em bronze (na foto acima).
Nossas gerações brasileiras pós-Segunda Guerra Mundial - devidamente espelhada na pulsão do empreendedorismo norte-americano - ainda vive de se alimentar de exemplos de self-made men. O porém é que nos agarramos demais nas exceções e, muitas vezes, ignoramos o retrato tórrido do abismo social no qual o Brasil foi formado. A história é sangrenta, como já sabemos.
Contudo, a questão contemporânea que nos traz a esta discussão não pretende uma historiografia da formação do nosso povo, ou mesmo adentrar nos sintomas que reconheço das questões raciais (da maioria minorizada), que nunca pode ser ignorada.
Quero chamar atenção ao self-made man da geração millennial. Trata-se de um grupo do imaginário social nascido em meio à inflação e que chegou à maturidade no trabalho com menor perspectiva de obtenção de bens e estabilidade profissional, apesar de ter sido preparado para isso pela educação formal. Foi a geração com mais diploma e menos emprego.
Com níveis de informalidade altíssimos e pouca capacidade de “fazer acontecer”, recorremos à versão pirata do self-made man: o CEO de MEI. Uso em demasia esta expressão, pois representa um inegável sintoma da era da plataformização, com diminuição (e fim) de direitos trabalhistas e o rearranjo do mercado de trabalho para uma nova dinâmica social e comunicacional.
Nas gerações anteriores à millennial, costumávamos chamar o jovem que conquistava o emprego e saía de casa para viver por conta própria de “homem feito” (made man). Agora, o papo de coach dá conta de que este homem não mais se constrói (self made), se reinventa. Reinvenção é eufemismo para sobrevivência. Em termos práticos, trata do empreendedorismo por necessidade.
O Byung-Chul Han, que citei por aqui na edição passada falando sobre os “sujeitos de desempenho”, completa a principal reflexão que podemos extrair sobre o que é este sujeito: “são empresários de si mesmos”. Ou seja, não só empreendemos por necessidade, como temos a necessidade de nos empresariar, nos rotular e reivindicar nossa relevância na grande contradição deste microempreendedor individual, o MEI, categoria criada pelo governo para acomodar os empreendedores informais pagando algum imposto.
O mesmo coach que preconizou a ideia de reinvenção foi o que teve a brilhante ideia de valorizar o passe do MEI e gourmetizá-lo. Ora, você não é um mero empreendedor, mas um chief executive officer, mais conhecido pela sigla CEO.
CEOs costumam ser os tais self-made man. Há os magnatas da TI sempre citados (Bill Gates e Steve Jobs); os casos de exceção tipo Silvio Santos, que era camelô e construiu seu império comunicacional, ou o José Carlos Semenzato, que vendia coxinha e virou “tubarão” do mercado.
Mas também rola aquele herdeiro cara-de-pau se colocando neste lugar de “self-made”, sendo que tava tudo pronto bem antes de ele chegar - no limite, o privilégio da interseccionalidade fez quase toda essa gente no mundo ocidental pegar um baita atalho pra chegar ao primeiro milhão.
O chefe executivo da operação é esse povo daí. E não você, que abre uma empresa pra passar nota de três dígitos e ostenta no LinkedIn o atual cargo de CEO. Por 70 conto ao mês você pode exibir este título. Só lembro para ter cuidado: CEO de MEI é apelido irônico autodepreciativo para as redes sociais. Use com moderação.
Coffice da semana: Mercado do Café (DF)
A memória dos bons tempos do Mercado Municipal, da pulsão gastrocultural que a Avenida W3 Sul de Brasília chegou a ter renovada pelo empresário Jorge Ferreira, me paralisava à porta do Mercado do Café, na 510 Sul. Mantenho problemas de aceitação da partida do nosso querido boêmio e da ideia de não haver mais o mercado tal como fora idealizado por ele, num esforço de trazer à capital planejada um pouco do desarranjo das cidades históricas.
Mas a vida tem que seguir e, parece-me, este "novo" Mercado do Café faz isso bem. Acho meio grande demais para uma cafeteria, até subaproveitado, embora seja lindíssimo o espaço, com loja, torrefação e até um espaço de leitura, mas acompanhado de um som alto demais.
Pouca gente circulando nas três vezes que por lá estive. É gente que faz a gastronomia ganhar vida e não só a comida, não só a bebida. O lugar tá bonito, organizado. Ótimos produtos, excelente serviço de barista, com uma bela variedade de métodos para quem, como eu, gosta de brincar de escolher e provar diferentes abordagens para o café. Além disso, o Mercado do Café tem clube de assinatura e promove cursos e degustações.
O wi-fi é aberto, há tomadas espalhadas estrategicamente. Espaço muito bonito, convidativo e acolhedor, mas a nostalgia da boêmia de outrora bate forte toda a vez.