Camisa
Breve anedota de uma família de "vira-casacas"... e como essa atitude ilustra as complexidades do mercado de trabalho
Metáforas desportivas não estão bem no meu domínio. Mas vamos lá.
Pode ser algo da minha criação. Meu pai sabia muito bem estimular esse espírito esportivo nos filhos, mas sua estratégia levou a um resultado inesperado: uma família de vira-casacas.
Ele, o patriarca, morou em tantos estados que absorveu muitos sotaques e expressões regionais, mas, sobretudo, simpatia por, ao menos, um clube a cada pouso: era Goiás em sua terra natal; Inter no Rio Grande do Sul; Cuiabá no Mato Grosso; Londrina no Paraná; Galo em Minas; Corinthians em São Paulo; e Flamengo no Rio, mais por conveniência.
Nascemos no auge da Era Zico. Meu pai então se via radicado em Brasília, numa época em que a cidade torcia pelo Flamengo — ou contra ele. Era comum para a nova capital (ainda o é) torcer para algum time do Rio (SP veio depois e Minas corria por fora). Do DF mesmo, era uma minoria que se dividia entre a paixão local e o “time de verdade”, na série A.
Resultado: fomos, meus dois irmãos e eu, criados flamenguistas por um pai supostamente rubro-negro.
Isso até bater a puberdade e o pescoço conseguir se espreitar para fora do ninho.
Mais velho, fui o primeiro a me rebelar. A começar pela preferência em acompanhar mais a NBA do que o Brasileirão e mais a aurora de Falcão no futsal ao crepúsculo do vovô Júnior no gramado.
Porém, despertado por um sentimento de pertencimento pulsante, elegi como meu time de futebol o Gama, cidade do DF por onde a goianada do lado paterno chegou à capital. Desde muito novo me afeiçoei também pelo saudoso Palhaço Pirulito, a quem sempre atribuí o status de mascote do nosso time. Ninguém vestiu a camisa do Gama como ele (a foto é uma homenagem ao querido José Cavalcante).
Érico, o do meio, aproveitou a gourmetização do futebol paulista nos anos 90 e o inédito título do São Paulo para, pouco depois do mundial de 92, se tornar tricolor. O lado pernambucano da família (originalmente sergipana) ajudou também: o povo lá se divide entre Sport e Santa, mas todos torcem também para o São Paulo.
Gabriel, o caçula, ficou anos às voltas entre Criciúma, Bragantino e Portuguesa (imagino que pelos mascotes) para se comprometer, enfim, com o Vasco. Nascido o seu primeiro filho, com a infelicidade das campanhas cruzmaltinas da última década, hoje cria o primogênito como são-paulino — e prefere, na real, acompanhar a NFL.
Meu pai assumiu seu clube do coração. Que não é o Goiás, mas o Coringão.
E, hoje, todos se simpatizam pelo Gama (Gabriel não assume). É o time do meu pai no Distrito Federal.
Vestimos muitas camisas nesta família.
Para a cultura brasileira, um necessário acessório identitário. Mais do que o próprio sobrenome. Havia uma turma na faculdade onde leciono com três Luíses — dois deles seguidos de “Felipe” (não necessariamente nesta grafia).
Como identificá-los? Sobrenome? Não. Time. Era Luís Corintiano, Luís São-Paulino e Luís Fluminense.
Aqui já falamos da camisa da expressão brasileira cunhada pelo mundo do trabalho para mensurar comprometimento com a firma. Vestir a camisa no jogo (antes, durante, depois) é um gesto de engajamento dos mais aguerridos.
Identidade, pertencimento, sentido de comunidade e até traje de batalha, tamanha a importância em se vestir a camisa de um time.
Em certo momento, o mundo corporativo se apossou da teoria — principalmente a partir dos núcleos de gestão de pessoas, antigamente mais conhecido pelo termo objetificado de recursos humanos.
Seu compromisso, enquanto funcionário (hoje colaborador), era cobrado como além da folha de pagamento. Cobrava-se, em contrapartida, fidelidade.
Um atributo paradoxal. Ora, como assim questionar a fidelidade? Bem, veja, há um mercado de trabalho praticamente extinto em que havia motivo para tal fidelidade.
Primeiramente, é preciso entender o vestir a camisa em uma empresa na qual a expectativa do trabalhador era se desenvolver, crescer em um plano de carreira, até aposentar com um sentido de dever cumprido e uma pensão suficiente para aproveitar a velhice.
As relações mudaram e as dinâmicas do mercado de trabalho são outras. Há desde problemas decorrentes de disputas no plano social (progressões, aposentadorias, estabilidade) como também das próprias funções. Algumas desaparecem, outras nascem.
Sem falar na economia, com novos parâmetros de produção, rentabilidade e valoração de bens e de serviços, além do crescimento da informalidade, da pejotização — sempre sob a ameaça da repentina extinção daquela função em meio à velocidade das soluções do progresso e do desenvolvimento.
Ou seja, o trabalhador do século 21 continua intimado, muitas vezes, a vestir a camisa da firma. O termo causa até ziriguidum às novas gerações, que já identificam essa atitude como abusiva, tóxica e ultrapassada.
Ainda defendida por muitos motivadores ocupacionais como uma necessidade, para fins de resultado, não consigo enxergar hoje um cenário à maneira do passado em que faça sentido o vestir a camisa.
Afinal, a própria cultura do trabalho hoje obriga a grande parte da população de manter-se no jogo de, ao menos, dois times simultaneamente. Literalmente, trabalhadores trocam o uniforme no meio do expediente para formar uma renda digna com a soma das duas ocupações.
Exigir vestir a camisa, não é só antiquado. Vai contra a natureza das atuais relações de trabalho, muito mais rotativas, efêmeras e, até, etéreas. Hoje neste time, amanhã noutro. Assim nos tornamos uma força de trabalho de vira-casacas. No melhor sentido até.
Coffice da semana: Los Baristas (DF)
Sem dúvida uma das melhores cafeterias de Brasília (DF) e, por assim ser, também uma das maiores referências de torra e de serviço de barismo do Brasil. Los Baristas - Casa de Cafés, na 404 Norte da capital federal, está no rumo para completar 10 anos de um dos conceitos pioneiros que reconhecemos como Coffice.
Em breve a plaquinha do certificado Coffice estará pendurada lá para você identificar mais facilmente este lugar como perfeitamente acolhedor para o trabalhador remoto. E você não precisa esperar chegar para dar um confere lá;
No Los Baristas, o café está no centro de tudo. A dedicação de Vitor Ávila em visitar as fazendas pessoalmente, trazer exemplares dos melhores grãos que o Brasil produz e tratá-los à altura, é raro.
As criações mais diferentonas também são de cair o queixo. Há uma ótima coquetelaria à base de cafés, com belíssimas opções, mas o novo favorito da casa é justamente o lançamento do Cold de Cana (foto) — que, aliás, é a bebida do combo do Brasil Coffee Week do Los Baristas.
Um clássico cold brew, mas nitrogenado, extraído direto da tap, misturado ao caldo de cana. Geladíssimo e muitíssimo oportuno para esses temos de “Meu Deus!”, na estiagem infinita de Brasília.
Belíssima opção para sentar para trabalhar sossegado nas cadeiras coloridas ou no balcão.
Água da casa em autosserviço é sempre aquele diferencial para quem pratica o coffice. Wi-fi bom e estável, pontos de energia estratégicos para mesas menores, mesa de reunião e dá pra trabalhar até no balcão, se você tiver lombar para tal aventura.
Um coffice por excelência.