Esta coluna foi escrita com um café tradicional coado Coanop, dos assentamentos Palmares e Dom Helder Câmara, do MST, torrado por Ahá Cafés
Primeira semana do ano e ainda não tinha um calendário de 2023 na mesa do meu escritório. Nunca comprei um calendário físico na vida, pois sempre recebia alguns direta ou indiretamente. Oficina mecânica, embaixada, órgãos públicos, clientes mil de assessorias que me presenteavam no kit de boas festas ao fim do ano…
Mas neste ano ainda não teve. E o ano começou com muito trabalho por aqui. Nada de férias, passeio, viagem ou aqueles momentos para se esquecer compromissos. Que falta me faz, sobre a mesa aquele pequeno livrinho em forma de prisma a me obrigar o planejamento.
Na minha dinâmica do trabalho remoto o ano não passou, pois o fluxo era contínuo. Organizei as leituras de 2023, mas as comecei em 2022 e abandonei metade delas em favor de outra atividade acadêmica.
Quando olho por cima do computador para o calendário: dezembro 2022.
Estou preso às demandas de dezembro de 2022. Alguém mais aí assim? É o meu mês da marmota, sem anjos cantando harmonias e recesso de fim de ano. Nesta semana acordei todos os dias não tão cedo como de costume, mas me exercitei, fiz mais café em casa e tomei menos na rua como é de costume em minha rotina nos coffices da cidade.
Abusei da minha moka.
Banho, devocional, leitura e vamos para o home office desta vez. Olho por cima do computador para o calendário: dezembro 2022.
Por onde começo? Governo novo, ameaças velhas. Golão no café, abro uma aba: e-mail. Outro gole, outra aba: whatsapp. E vem portais de notícias, Twitter, clientes, parceiros, arrumar coisa pra criança fazer nas férias sem viagem e mais um gole de café. Foram já 40 abas divididas em duas telas.
Olho por cima do computador para o calendário: dezembro 2022.
Era pra estar tudo entregue. Dia 30. O prazo era dia 30. Continuo tentando cumpri-lo, afinal ninguém mandou meu calendário para 2023. Estuda, escreve, planeja. Planejar! Era isso que faltava.
Dezembro é o tempo de planejamento para o ano vindouro. “E o que você fez”?
De repente me dei conta da real necessidade do planejamento. Remir o tempo. Recentemente reli o livro autobiocinematográfico de Andrei Tarkovski: Esculpir o tempo. E as lições do mestre russo bateram diferente. Ao elucidar o trabalho do diretor de cinema como esse escultor de tempo, que ajusta o poder da percepção para a experiência sensorial, a partir da ideia de que o tempo reflete a constituição do eu.
Precisamos dominar o tempo, no melhor sentido que “dominação” pode soar. “O tempo é necessário para que o homem, criatura mortal, seja capaz de se realizar como personalidade”, ensina Tarkovski.
Inverti a necessidade. Em vez de usar dezembro como tempo para planejar e começar a pensar como planejar o tempo. Eis a equação do tão almejado equilíbrio para uma rotina pensada a partir da vida e não do trabalho.
A dinâmica temporal cabe à percepção e não ao controle. Convenhamos ser mais fácil acomodar a vida ao trabalho. Os dias do calendário apontam os feriados e os finais de semana. Posto. No resto dos espaços não marcados está implícito o trabalho e possibilidade de acomodar os compromissos mês a mês.
Subverter essa ordem temporal está ligado menos ao calendário e mais a como encarar a vida no todo.
Mas ainda olho por cima do computador para o calendário: dezembro 2022. No final das contas, até para esculpir o tempo tão poeticamente, precisamos de um compromisso com o sistema de contagem de datas.
Meio caminho andado.
É o meu mês da marmota. Dezembro ainda não terminou.
Em tempo: duas atualizações de ontem contradizem esta cambaleante crônica sobre o tempo pouco antes de enviar a newsletter para vocês. Acabou que ganhei um calendário da prima Ana Cláudia ontem mesmo (risos). E os ovos da ninhada dessa serpente do fascismo chocou e testemunhamos de perto o terror antidemocrático que escalava desde 2016 em solo brasileiro.
Coffice da semana: Crioula Café (DF)
Memórias, ancestralidade e o hoje banalizado “afetivo” sempre alimentaram o setor da hospitalidade. Afinal, ela própria, nasce do gesto generoso, da “dádiva”, teoria que conceitua esse serviço, "tão moderna e contemporânea quanto característica das sociedades primitivas", escrevia Jacques Godbout em Recevoir c’est donner (receber é dar).
O valor da memória gastronômica ainda é digno de nota, apesar do que a indústria de ultraprocessados ou o ostensivo uso marqueteiro por restaurantes fizeram com ele. Vide o que a chef e barista Helena Rosa fez com seu Crioula Café, no Guará II (DF). Nascida e criada em quilombo na região de Cavalcante (GO) e hoje radicada em Brasília, ela trouxe para o meio da cidade, num cando escondido de uma galeria comercial da QI 30, suas memórias de infância.
Não é só história contada, mas história vivida. E, no caso de Helena, história feita de memória reconstituída para um negócio muito bem desenhado comercialmente. Espero que, apesar do pouco movimento que testemunhei nas vezes em que fui, cresça bastante.
Tem o café coado, mas tem o V60, a clever, o espresso e a prensa francesa. No cardápio, a coisa fica mais bonita ainda. Pamonha como feita em Goiás. Licença para um paradoxo: a você que não conhece Brasília, estamos situados no meio de Goiás, mas temos pamonha que preste. A de Helena é feita ali, poucas unidades.
Mandioca e milho. Rainha e rei da biodiversidade brasileira. Pão de queijo, beijus, cuscuz, bolos. Bolos dos mais caprichados: o de macaxeira é levíssimo, perfeitamente esférico e dourado feito ornamento. Há chocolate com baru e muitas receitas com o cajuzinho do Cerrado, tão abundante nos quilombos de Cavalcante e, claro, sazonal. Por volta de agosto e setembro rola suco e compota com o fruto para ornar waffle. Sim, a adesão ao cosmopolitismo é necessário por força do negócio - e, julgo aqui, bem vindo. Mas o orgulho da casa é o bolo de laranja, acompanhado de calda da mesma fruta.
Helena normalmente está lá para receber o cliente, simpática e muito modesta para a enormidade de seu talento.
E, por fim, num é que podemos praticar um bom coffice por aqui? Tem wi-fi e água da casa da melhor qualidade: extraída do filtro de barro no copinho de alumínio. Memórias importam, nem tudo é só marketing.