Esta edição foi escrita acompanhada de um cold brew nitrogenado
Em todo aniversário de Brasília uma angústia volta a remoer minhas entranhas. Há um grande sentimento conflituoso que envolve a ideia de celebrar a capital federal. Nasci aqui e cresci como esse jovem abastado filho do sonho de Dom Bosco. Ou seja, nascido em berço de ouro, pois cheguei nesta Canaã moderna quando já estabelecida. Nada de peregrinações desde o Nordeste (terra de minha mãe) ou de labor no roçado do então remoto Goiás (terra de meu pai).
Logo na adolescência percebo a Brasília ao redor e para além do plano e do Plano. E, desde então, carrego a consciência de ambas as cidades: a do progresso e desenvolvimentista, sede do poder; e a erigida sobre os ossos dos nossos irmãos. Cidade construída a concreto, suor e sangue. Brasília, é uma maquete do pressuposto da cidade medieval estudada por Le Goff - falo disso mais a fundo no meu curso Comida de Pensar e, em breve, num artigo científico que está no prelo.
“Cria-se um relativo equilíbrio entre nobreza, que participa do movimento urbano mais do que se tem afirmado, burguesia que dá o tom à sociedade, e classes trabalhadoras, das quais uma parte — urbana — fornece a massa de mão-de-obra às cidades, e a outra — rural — alimenta a cidade e é penetrada por seu dinamismo”
Jacques Le Goff
Além das condições adversas (para se dizer o mínimo) às quais os operários da construção foram submetidos, ainda há toda a história da distinção praticada como política de governo para gentrificar o Plano Piloto. A consequência do aprofundamento dos abismos sociais que encontramos hoje no Distrito Federal também foi planejada. Só não é comemorada. Não deveria. Mas não pode ser esquecida — vide o episódio da criação da Ceilândia, retratado de maneira formidável pelo olhar crítico, ferino e bem-humorado de Adirley Queirós em A Cidade é uma Só?.
Pois cresci achando que a cidade era uma. Ingenuamente, falava com os amigos de outros estados que as cidades-satélites (como chamávamos antigamente as regiões administrativas fora do Plano Piloto e adjacências) eram como bairros e todo mundo pertencia a Brasília. A festa é da Grande Brasília. Mas de qual Brasília falávamos?
No mundo laboral, ser brasiliense era um privilégio. Perto dos três poderes, terra dos cursinhos e dos concursos mais vistosos ($$$). A vida aqui também era planejada: formar (no Ensino Médio e, quem conseguir, no Superior) para prestar concurso. Automático. Brasiliense = concurseiro. Eis a pecha.
— Conhece o presidente? É vizinho do ministro?, perguntavam-nos sempre os de fora.
Profissão? Servidor.
A pressão social para a cultura concurseira a um tempo reafirmava a Brasília do plano original, mas a outro impedia a nós, excêntricos autônomos, CEOs de MEI, assalariados da iniciativa privada, de sonhar com qualquer atividade de trabalho fora do enquadramento do funcionalismo público.
Comemorar os 63 anos de Brasília deve ser um exercício cívico, sim. Diria, mais para comemorar sua gente, seus modos e, claro, sua história com todas as suas contradições, como se é toda a formação de uma cultura. Mas também deve ser um convite à consciência desse plano mal-ajambrado que não cuida dos seus.
Não se enganem, adoro morar em Brasília. Sou plano pilotense e torcedor do Gama (e de mais nenhum outro time), por proximidade de parentesco, pois o lado goiano da família se estabeleceu por lá.
Cidade arborizada (do lado de cá). Até hoje tenho uma janela quebrada na minha sala, por uma bicada de tucano. Da casa dos meus pais observamos voos diários de araras-canindés. No pano de fundo, o “céu-de-brasília-traço-do-arquiteto”. Tudo é lindo, por entre as superquadras, “em meio a suas asas e dáblius e éles e eixos e ilhas”, como também cantava Sérgio Sampaio.
Os poetas e cantores costumam ser muito generosos com Brasília. É fascinante, sim, esta capital, sobretudo quando você a conhece fora dos cartões postais. Aliás, é fascinante o que acontece na periferia de Brasília, mesmo esquecida pelo poder público. A terra ainda é vermelha, os equipamentos culturais em muitas cidades não existem e não há jardins cultivados e regados pela Novacap nos balões. Por outro lado, são lugares que concentram as feiras e detêm grande potência cultural, criativo e comercial.
A angústia que se revela no Aniversário de Brasília, por suas fissuras sociais, voltam sempre nos 21 de abris, quando celebramos o triunfo do progresso, mas não da civilização. Junto-me, à utopia de Nicolas Behr, o poeta sul-matogrossense radicado por aqui desde 1974, que dedica sua poesia “aos esquecidos de Deus que construíram esta cidade de Brasília e que, um dia, construirão comigo, em sonho e sem dor, a cidade de Braxília”.
Coffice da semana: Nitrogênio Café (DF)
Quando falamos em coffice por aqui, vale sempre lembrar, referimo-nos à cultura urbana do café com trabalho assimilada pela cafeteria moderna em forma de posto efêmero de atividades laborais. Ou seja, praticar um coffice é como praticar o home office só que em cafeterias, algo como coffee shop office, ou coffee office ou, mais fácil: coffice.
Quase todos os lugares que trazemos semanalmente por aqui são adequados a esta prática (se não o são avisamos sempre). Vamos um pouco além, porque a ideia da newsletter em relação a cafeterias é estimular o uso da cidade (o café sendo este entreposto vital e destino seguro para um encontro, um papo, uma leitura desassossegada, uma saída de casa, um trabalho remoto ou um local para se tomar um café apenas).
Todo este preâmbulo é para falar que dentre as muitas cafeterias em que trabalho, a Nitrogênio Café é uma cuja a proposta representa literalmente o espírito do coffice. A proposta é justamente a de uma cafeteria para reunir gente em busca de tomada para ligar seus computadores ou carregar o celular. Ambiente silencioso, fechado e arejado o possível - uma vez que fica à beira de pista muito movimentada da 704 Norte. Wi-fi estável e grandes distâncias entre as mesas completam os serviços básicos para um bom coffice.
A casa trabalha com mesas menores (há uma mais ampla para quem quiser fazer reunião), normalmente usadas por indivíduos. Poucas vezes vemos uma dupla ali e, mais raro, um trio. O serviço é de autoatendimento. Pede-se nos totens eletrônicos e retira-se o pedido no balcão quando chamado o nome.
Como cafeteria, trabalha com cafés especiais, mas dedica-se a um método peculiar: cold brew. Não se trata de um simples café gelado, mas sim uma extração a frio. Aqui, portanto, você encontra o cold brew tradicional, mas, principalmente o Nitro Coffee, que dá nome à casa. O nitrogênio é uma adição importante para o plantio, nos cafezais, mas também se desenvolve como técnica para maior cremosidade no corpo do cold brew.
Com esta técnica, o Nitrogênio Café aproveita para produzir uma carta de drinques com esta base, desde laranja a tônica, passando por água de coco. Experiência legal. Além disso, trabalham com café na Bravilor ou na Bunn, não lembro ao certo (foi mal), mas o coado da casa é neste estilo.
Um olhar embasado pra essa dualidade que é ser Brasiliense ! Adorei e quero próximo coffice na Nitrogênio!
Fiquei curioso com o artigo. Esses dias estive em Brasília e consegui uma janela na agenda para um almoço e um café com um amigo. Na cafeteria do shopping fiquei pensando se tinha lido sobre ela por aqui.