As mortes do curriculum vitae
Do pedaço de papel engavetado na mesa do recrutador à tiktokização da entrevista de emprego
Esta publicação foi escrita acompanhada de um catucaí do Cerrado Mineiro com fermentação de 72 horas de Espigão do Palmital, Campos Altos (MG), torrado pela Sabino Torrefação.
Para a newsletter desta semana, estive tomado pelos alarmantes números da falta de acesso da juventude brasileira ao primeiro emprego. Segundo o IBGE a taxa de desocupação de pessoas entre 18 e 24 anos ultrapassa 19%. Vocês devem ter visto isso. Lembrei da procura do meu primeiro emprego, aos 17 pra 18. Classificados de domingo do jornal (é, gente, naquela época internet era só pra buscar cifra da Legião Urbana e ficar no chat do ICQ).
Num só dia me deparei com três golpes de pirâmide, dois estágios não-remunerados e muita, muita cópia do Curriculum Vitae entregue pra recepcionistas ou deixado sobre pilhas de papel acomodadas em bandejas de acrílico na beira da mesa. No meu CV constava endereço com CEP, telefone fixo, segundo grau completo e inglês fluente. Logo pintou uma entrevista. Cargo: telemarketing. Salário: R$ 189 + VT pra pegar o baú da TCB.
Esse CV morreu.
Com o avançar da idade e da formação, vieram novas exigências para a instrução curricular. Começava recebendo as malas-diretas da Catho, para conhecer as tendências de o que deve entrar e o que não pode de modo algum no CV. Não pode ter foto. Depois, tem que ter foto. Contato em cima, contato embaixo. P&B ou a cores? Fonte comic sans: vetado por infatilidade e falta de senso estético; fonte que imita máquina de escrever: vetado por parecer um tiozão, portanto, velho demais. Tem pouca experiência: desqualificado; tem muita experiência: qualificado em demasia.
Esse CV morreu.
Corporações mais parrudas começaram a exigir currículo digital. O destino não era mais a bandeja de acrílico com três andares ajustáveis, mas a caixa de e-mail. Não mudou grande coisa. Continuamos sem saber se alguém sequer viu. Se viu e não gostou, sequer respondeu. Se viu e gostou, talvez tenha uma oportunidade, caso a filha, o sobrinho ou alguém com o famigerado (e nunca fora de moda, impressionante) QI (quem indique) já não detiver a promessa da vaga - para mostrar que veio de baixo “como todo mundo”.
Esse CV morreu.
Agora é conta no LinkedIn. A rede social na qual você tudo pode. Aqui o frila passa a assinar como CEO (de MEI) e o autônomo se torna empreendedor, ou seu primo rico, o entrepreneur. O curriculum vitae dá lugar ao link do profile. Mais simples de atualizar, várias vantagens, mas resolveram ressuscitar o CV.
Esse CV morreu.
Para volta a obrigatoriedade de, mesmo com o link da rede social com todas as informações, ter que produzir no Canva um CV todo bonitinho, descolado, minimalista, com foto conceitual e a lista de habilidades e virtudes. Afinal, ninguém mais quer saber onde você trabalhou. É a cultura Vale do Silício: responda uma pergunta criativamente ou solucione um perrengue em 5 minutos e tá contratado. Logo se viu que essa coisa de trabalhar de bermuda no escritório com café em cápsula, mesa de sinuca, pufes e videogames não era pra qualquer firma.
Esse CV morreu.
As candidaturas, atualmente, são anunciadas pelo LinkedIn. Sim, ele de volta. As vagas sérias e também as “arrombadas”, como batizadas por perfis irônicos dedicados a expô-las nas redes ao lado. A título de melhor saciar possíveis curiosidades, uma vaga arrombada é daquelas do tipo “procura-se estagiário cursando o quinto semestre com três anos de experiência na área”.
Esse CV morreu.
LinkedIn deixa de ser a plataforma onde consta o curriculum vitae para exercer um papel de mediador de vagas, entre empresas que as oferecem e pessoas que se candidatam. Para concorrer, basta recadastrar tudo aquilo que está no seu LinkedIn nas plataformas de recrutamento, tipo Gupy, Abler, Connekt, etc. Nesses ambientes, o recrutador exige esse penoso cadastro, mas também permite complexas atividades, que incluem jogos psicológicos e aritméticos que duram mais de hora.
Esse CV morreu.
No fim das contas, o que tá valendo é fazer video selfie de um par de minutos, mostrando para o recrutador porque você seria o candidato perfeito, como se você concorresse a uma vaga de reality show. É a tiktokização do CV, na qual sua performance em frente a uma câmera é capaz de passar ao recrutador confiança ou desconfiança. Tudo vai depender da dancinha que você conseguirá fazer.
Esse CV ainda não morreu. Mas é o CV editado em Word com fonte Comic Sans quem carrega para o túmulo a pecha da crise estética.
Coffice do dia: 112 Café (DF)
Gosto das portinhas que escondem algo grandioso dentro. Como a casa do Snoopy ou a toca do Pernalonga. Quase passei batido pela 112 Café, descendo a Rua 8, vicinal à caótica Castanheiras em Águas Claras (DF). A cidade, nascida da especulação imobiliária como refúgio da classe média em meio à desordenada explosão urbana da planejada Brasília, criou uma dinâmica própria no comércio de alimentos e bebidas de 10 anos pra cá.
Outrora um deserto gastronômico, Águas Claras começou a replicar filiais de negócios de sucesso do Plano Piloto, mas hoje faz o inverso: o Plano se tornou destino de iniciativas daquela região administrativa. Algo que me fazia falta, obviamente, eram as cafeterias. Na enquete que realizei no Instagram @comidadepensar foi a cidade mais citada. Afinal, são ainda poucas as casas de café especial.
A 112 Café é uma dessas raridades. A fachada discreta supõe um balcão, como um bar de cafés. Não é nada disso. O balcão-lojinha está lá, com baristas se ocupando de ótimos preparos. O salão dispõe de umas quatro ou cinco mesinhas, mas possui um mezanino que o praticante do coffice vai adorar: wi-fi estável, tomadas em abundância e até um mesão apropriado para reuniões e estudos em grupo.
Ainda assim é pouco para atender a ainda emergente Águas Claras. Há muito espaço para novas cafeterias bacanas pintarem por lá. Prometo voltar para mais um rolê e trazer, espero, boas surpresas.
As vezes me pergunto se esses CVs morreram mesmo ou só viraram zumbis meio frankestein que a cada vez ressurgem com retalhos de algum outro formato para nos assombrar na árdua e cansativa busca por emprego.