Amor
não é tempero
Amor não é tempero.
[1992…]
Soava e ressoava há praticamente um ano nas rádios e em trilha de novela o então novo sucesso da dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano.
O suficiente para causar náuseas pelo grude melódico e, por outro lado, embalar os romances mais açucarados.
Um baita contrato publicitário elevou a canção à imortalidade do cancioneiro, portanto do imaginário, popular enquanto reduzia a cozinha brasileira a uma mistura mágica de ingredientes de nomes estranhos como maltodextrina, glutamato monossódico, inosinato dissódico, corantes, aromatizantes, conservantes, estabilizantes, em alguns casos incluindo até aditivos cosméticos e outras “especiarias” sintéticas.
— É o amô-ô-ô…. — cantava Zezé, após a empregada interromper o almoço de uma estereotípica família brasileira de classe média, discretamente, da porta da cozinha, em um cochicho, como se revelando um segredo:
— Dona Cláudia, acabou o amor — dizia enquanto sacudia uma embalagem do pozinho que infiltrava os ouvidos dos brasileiros nos intervalos do telejornal noturno e do desenho matinal, para domesticar os paladares de um povo com altos índices de uma viciante e acachapante e viciante dose de umami.
O efeito tardio seria de um povo desaprendendo a cozinhar com tempero de verdade.
Afinal, comida pra ser boa precisa de nada… só amor, segundo a tese hipodérmica lançada pela empresa milionária de pozinho, sustentada pela favorecida e indústria dos ultraprocessados, uma peça central para entender o porquê de estarmos sempre tão distantes de alcançar uma soberania alimentar nacional.
[Corta para 2025]
O amor que temperava o feijão da família brasileira, ganhou contornos ainda mais fatais.
Antes o amor partia da engenhosidade dos times de marketing como tática de tornar palatável os produtos de uma indústria de aportes parrudos, isenções fiscais descabidas e aliada de um ecossistema varejista neoliberal.
Nos últimos meses, o amor é representado por um surto coletivo à base de caramelo e corante alimentício vermelho.
O morango do amor repagina a velha senhora, a maçã do amor, em um corpo mais atraente, mais doce, mais viral… como se protagonistas de um remake gastronômico-instagramável de A Substância.
Dois elementos são cruciais para interpretar o êxito do amor como tempero: afeto e pertencimento.
Ou melhor: o sequestro dos afetos, como estímulo nostálgico e apelo emocional ao consumidor carente; e a urgente necessidade pós-pandêmica de se sentir virtualmente pertencido a uma corrente comunitária de desconhecidos alimentados pelo algoritmo.
O morango do amor, obviamente, é um derivado da clássica maçã do amor. Ela própria nascida já com esse atributo da imagem estética, pois fora criada em New Jersey por um empresário do ramo da confeitaria como bibelô de vitrine para chamar atenção de seus doces. Segundo a história contada pela Food Network não era pra comer a tal red candy apple nos idos de 1908.
Não subestimemos o poder sedutor dos confeitos açucarados.
O doce é o gosto que mais adula o paladar. Não cria resistência, atrito, incômodo. Conforta, desperta o mais fácil e ingênuo reflexo de se gostar.
Diriam que gosto não se discute. E não se discute mesmo se compreendido apenas nessa superfície narcisista dependente do "fator uau".
Afinal, esse gosto não se propõe a nada além. O açúcar, e de outro espectro, o umami, representam justamente essa superfície. Nada querem entregar a não ser a expressão mais óbvia e equivalentemente mais pobre de significado real — ao menos na medida usada pela indústria dos ultraprocessados.
A mordida no morango do amor é como a primeira garfada do miojo temperado com o pozinho mágico: “uau!”.
Uma expressão pornográfica da sensação daqueles gostos, pois pouco ou nada combinada a outras camadas de sabor das quais se poderia extrair alguma complexidade.
Fútil e evanescente, esta é uma receita forjada sob o signo do que chamo de imagem-gosto.
O que mais importa em sua experiência gustativa reside na completa ausência do paladar como veículo de produção de sentido.
Relega-se à experiência estética do gosto o mero valor da imagem, cuja forma, a sedução e o caráter informativo exige a ausência de complexidade para a finalidade de gerar uma celebração do medíocre.
Neste aspecto, o morango do amor ainda permite uma percepção ainda mais espúria do fenômeno imagético do mero-gosto, graças às novas formas de produção de sentido, outrora limitada às recatadas vias da TV e das páginas de livros e revistas de receita.
Com as mídias digitais e a consequente distribuição das redes comunicacionais, criou-se uma certa democratização do acesso e da produção de audiência, mas também uma ansiedade coletiva, o famoso Fear of Missing Out (FOMO), aproximadamente traduzido como o medo de ficar de fora do rolê, de perder o bonde da trend.
Escalou muito rapidamente o boom do morango do amor para além da confeitaria — e mesmo dos memes das reproduções caseiras frustradas.
O efeito morango do amor gerou resíduos de imagens gastronômicas mais ofensivas, fúteis e descerebradas que a própria receita redundante de morango envolto em massa de brigadeiro branco, banhado em caramelo tingido artificialmente de vermelho.
Talvez um mínimo de acidez que restava na fruta in natura desaparece nas camadas de puro açúcar.
O que seria pior?
É influencer envelopando tudo quanto é comida em caramelo vermelho em ponto de bala: torresmo, picanha, coração de frango, coxinha, bacon no hambúrguer... ainda não vi na borda da pizza (fica a dica).
Embora tenha gerado diversos efeitos — inclusive econômicos, a ponto de elevar o preço da fruta no Ceasa —, o morango do amor deve ser futuramente lembrado mais pelos seus memes do que pelo seu gosto.
Mais ou menos como o efeito do pozinho mágico antes da internet, lembrado bem mais pelo seu jingle do que pelo efeito gastronômico.
Enquanto a maçã do amor integrava um imaginário sazonal, de festejos e de atividades populares como o São João e os circos itinerantes, o morango do amor representa o implacável e imediatista desejo. Um desejo motivado pelo capital do pertencimento e não gastronômico.
Por hoje é só.




